sábado, 8 de junho de 2013

Link de livros

Desafios e utopias no ensino da geografia


Publicação: 1997

Informações disponíveis em: http://www.4shared.com/office/cIVPNHyJ/Desafios_e_utopias_no_ensino_d.html








PCN'S: Futebolistas e padres se encontram num Brasil que não conhecemos



Publicação: 1997

Texto completo disponível em:
www.4shared.com/office/3BvUMUjZ/Futebolistas_e_padres_1997.html







Ler e escrever a geografia: Para dizer a sua palavra e construir seu espaço



Publicação: 1998

Texto completo disponível em:
http://www.4shared.com/office/EIcC7jvO/Ler_e_escrever_a_geografia_199.html







Escola e universidade: uma luta entre a dura realidade e a necessária utopia



Publicação: 1999

Texto completo disponível em:
http://www.4shared.com/office/qtsk0TGM/Escola_e_universidade_1999.html







Iconoclastia constante na (de)formação de professores de geografia



Publicação: 2000






Texto completo disponível em:
http://www.4shared.com/office/D1E8_mDz/CONOCLASTA_CONSTANTE_2000.html


Um globo em suas mãos



Publicação: 2003

Informações disponíveis em:
http://www.4shared.com/office/b3cWbk6P/Um_globo_em_suas_mos_2003.html






Hércules, Sísifo, Atlas eram professores? Garrafas e muitas dúvidas mais na formação de professores


Publicação: 2003


Texto completo disponível em:
http://www.4shared.com/office/5oNPeJO6/hrcules_ssifo_atlas_2003.html






Leituras, escritas e falas para que a docência em Geografia faça diferença para nossos alunos



Publicação: 2008






Texto completo disponível em:
http://www.4shared.com/office/09bXYzkM/Leituras_escritas_e_falas_2008.html


A geografia como exercício diário da  (re)leitura do mundo



Publicação: 2008






Texto completo disponível em:
http://www.4shared.com/office/lPtsiUIR/A_GEOGRAFIA_COMO_EXERCCIO_DIRI.html


Geografizando o jornal e outros cotidianos: práticas em Geografia para além do livro didático



Publicação: 2009


Texto completo disponível em:
http://www.4shared.com/office/Y8NzqJK9/geografizando_o_jornal_e_outro.html






Conheça e revele-se estudando a cidade: experiências geopedagógicas para pensar nossa ontologia



Publicação: 2011


Texto completo disponível em:
http://www.4shared.com/office/NsLAJYuY/conhea_e_revele-se_estudando_a.html

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

AS REFERÊNCIAS TEÓRICAS DA GEOGRAFIA ESCOLAR E SUA PRESENÇA NA INVESTIGAÇÃO SOBRE AS PRÁTICAS DE ENSINO




AS REFERÊNCIAS TEÓRICAS
DA GEOGRAFIA ESCOLAR
E SUA PRESENÇA
NA INVESTIGAÇÃO SOBRE
AS PRÁTICAS DE ENSINO


                                                                                              Beatriz Aparecida Zanatta*

Resumo: com o objetivo de subsidiar a discussão na disciplina Didática da Geografia,
o artigo apresenta uma reflexão sobre os fundamentos teórico-metodológicos das
propostas de ensino de Geografia, bem como um panorama dos resultados das pesquisas
sobre a prática de ensino dos professores de Geografia do Ensino Fundamental. A
conclusão indica o entendimento de que as propostas em estudo podem ser situadas no
âmbito de duas abordagens, a histórico-crítico-dialética e a fenomenológico-hermêutica.
Em relação às práticas, o que se percebe é o distanciamento em relação à produção
acadêmica sobre o ensino de Geografia.
Palavras-chave: Geografia, Geografia Escolar, prática educativa, didática

Presume-se que a investigação de bases teóricas para o ensino de
Geografia tenha como objetivo influenciar a prática docente e, assim,
alcançar certos resultados de aprendizagem dos alunos. Na produção atual
sobre o ensino de Geografia, algumas propostas teóricas têm sobressaído,
fato que pode ser comprovado pela menção delas em pesquisas sobre
práticas de ensino, indicação em concursos de seleção de professores e
pela presença e participação de seus autores em congressos e encontros.
O objetivo deste texto é, com base na consulta a publicações de textos e
artigos e a teses e dissertações, verificar a relação do formato assumido
pelas práticas de ensino, tal como revelado nas pesquisas, ante as propostas
teóricas para o ensino de Geografia em evidência nos últimos anos.
As propostas teóricas mencionadas foram divulgadas ao longo da
década de 1990 e na primeira metade dos anos 2000. São apresentados
três autores, porém julgou-se necessário inserir os Parâmetros Curriculares
Nacionais de Geografia, por constituírem, obviamente, material de
consulta na elaboração de planos de ensino de Geografia.
286 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
Cumpre observar que as obras citadas não são as únicas que têm
servido de suporte na elaboração de planos de ensino e na orientação
metodológica das práticas de ensino. A sua escolha deu-se pela sua maior
representatividade na citações em relatórios de pesquisa, publicações e
trabalhos de pós-graduação.
Neste texto, são apresentadas considerações sobre as propostas
de ensino e as práticas da Geografia escolar brasileira. Ao fazer isso,
pretende-se indicar as bases teóricas que fundamentam a reflexão teórico-
prática do ensino de Geografia e delinear, com base nas pesquisas
sobre o assunto, o perfil das práticas de ensino de Geografia no Ensino
Fundamental. Para essa tarefa, tomo como referência temporal a década
de 1990 e utilizo as contribuições de especialistas da área que têm se
destacado na pesquisa sobre o ensino de Geografia, bem como minhas
próprias reflexões sobre essa temática explicitadas em outros trabalhos.
A organização do texto é feita em três partes, da seguinte forma: a
primeira apresenta um breve relato dos principais acontecimentos da década
de 1990 e suas implicações na ciência geográfica e no ensino de Geografia;
a segunda traz reflexões sobre as propostas de ensino de Geografia, com
vistas a indicar aproximações e diferenças entre elas; a terceira destaca
os elementos da prática de ensino dos professores de Geografia em sua
possível correspondência com as propostas teóricas analisadas.
A CIÊNCIA GEOGRÁFICA E O ENSINO DE GEOGRAFIA
NO CONTEXTO DA DÉCADA DE 1990 E PRIMEIRA METADE
DOS ANOS 2000
A década de 1990 foi considerada um período de grandes mudanças
em todas as esferas da sociedade. Essas mudanças colocaram como
desafio para as diferentes áreas científicas, especialmente para as ciências
humanas, a necessidade de refletir sobre os limites das abordagens
teóricas então vigentes para compreender as transformações no mundo
e na organização da sociedade.
Os princípios que sustentaram os modelos teóricos mais prestigiados
da ciência moderna foram então vistos com desconfiança perante
a diversidade social, as estratégias da economia mundial e, sobretudo,
determinados componentes da realidade, como cultura e meios de comunicação.
Tratava-se portanto, da necessidade de um modelo teórico
que pudesse levar em conta as condições existentes na sociedade sem se
deixar influenciar por “realidades desejadas” (GOMES, 1996).
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 287
Essa preocupação gerou reflexões e análises que desencadearam
intensos debates no pensamento filosófico e nas diversas áreas científicas,
particularmente na ciência geográfica e no modo de se trabalhar essa
ciência como matéria escolar.
Sobretudo na Geografia, as críticas que colocaram em questão
os limites teóricos e práticos das perspectivas vigentes, basicamente a
clássica (ou tradicional ou positivista) e a analítica (ou nepositivista ou
quantitativa), datavam de bem antes. Podemos situá-las nos anos 1970,
ou mesmo um pouco antes, com o movimento de maio de 1968, a guerra
do Vietnã, a ascensão do feminismo e o surgimento da New Left. Nessa
época, surge na Europa e nos Estados Unidos e, mais tarde, no Brasil
uma corrente que buscava inserir a Geografia Humana Crítica no quadro
explicativo do marxismo.
O movimento crítico surgiu, assim, em função da crítica ao saber
da Geografia até então produzido e da responsabilidade e do compromisso
político de geógrafos com a sociedade e com o papel social da Geografia.
Com essa preocupação, a Geografia Crítica marxista fixou como meta
prioritária a denúncia da despolitização ideológica do saber e do fazer
das Geografias vigentes.
Como atestam Mendoza et al. (1982), o movimento que resultou
em projetos e construções com base numa caracterização marxista do
espaço não foi, desde o início, monolítico. As diferentes vinculações
a esse pensamento estão associadas com as posições ortodoxas, estruturalistas
e humanistas. Conforme interpretação de Capel e Urtega
(1991), o marxismo assumido por muitos geógrafos radicais possui
“forte traço historicista”, o que o aproxima da Geografia Humanista,
cujos fundamentos são o existencialismo e a fenomenologia. Mendoza
et al. (1982) também observam que a denúncia de Lacoste sobre os
conteúdos ideológicos e estratégicos do saber geográfico e suas relações
com o poder aproximam-se das preocupações de Michel Foucault. No
Brasil, Moraes (1988) esclarece que a formulação de peso que surgiu
no marxismo ocidental nas últimas décadas é a de Louis Althusser.
Segundo o autor, tal proposta direciona-se como um esforço de objetivação.
Althusser vê o marxismo como ‘ciência’, e busca apreender
os seus procedimentos lógicos e essenciais. Observa, ainda, que há
nesse posicionamento uma nova investida da positivação do marxismo
sob a égide de uma influência do estruturalismo. Ao comentar sobre
as posições que permeiam o debate marxista contemporâneo, Moraes
(1991, p. 90) assim se expressa:
288 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
[...] o debate marxista (em sua ampla variedade) avança no diálogo
entre duas posições antagônicas. De um lado, a perspectiva que se
poderia denominar de estrutural, preocupada em captar regularidades
na armação dos processos, interessada em definir padrões e
papéis, permeada por uma ótica funcional ou sistêmica. De outro, a
corrente historicista, atenta à singularidade, buscando estabelecer
mediações, e orientada para a visão do processo e de continuidade
histórica. Estas duas macrovertentes expressam-se por conteúdos
diferenciados, porém respondendo sempre nos debates teóricos a
preferência pela estrutura ou pela história. O universo da relação
entre política e cultura vai ser destacado na segunda visão, o que
é revelador de sua ausência na discussão geográfica marxista,
prioritariamente guiada pela primeira concepção.
Em que pesem as diferentes vinculações ao pensamento marxista,
o ponto comum dessas análises reside na aceitação da existência de
relações mútuas e complexas entre sociedade e espaço e entre processos
sociais e configurações espaciais.
No Brasil, esse movimento se manifestou a partir de meados
da década de 1970 e se desenvolveu nos anos posteriores, sendo o III
Encontro Nacional de Geografia, realizado em 1978, um dos seus marcos,
conforme Andrade (1987), Moreira (1992) e outros. Desde então,
os geógrafos que assumiram a posição antipositivista passaram, com
base nos pressupostos teóricos e metodológicos da Geografia Crítica,
a questionar os fundamentos epistemológicos da Geografia Positivista
e a propor novos caminhos para a ciência geográfica e a prática do seu
ensino. Dentre eles, podem-se destacar os nomes de Antônio Carlos R.
Moraes, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Armando Correia da Silva,
Carlos Walter P. Gonçalvez, José W. Vesentini, Milton Santos, Ruy
Moreira, Wanderley M. Costa, que contribuíram para repensar a ciência
geográfica.
Na virada dos anos 1980 para os de 1990, o pensamento geográfico
construído sobre uma base crítica de cunho marxista passou a
receber duras críticas. Essas críticas foram endossadas por reflexões
sobre o desempenho mundial dos regimes políticos dos países do Bloco
Socialista e culminaram com o acontecimento emblemático da queda do
muro de Berlim, em novembro de 1989. Criticavam-se, basicamente, os
postulados das formulações marxistas ortodoxas, como, por exemplo, a
primazia aos fatores econômicos, o reducionismo das lógicas explicativas
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 289
da realidade atrelando a superestrutura às injunções da infraestrutura. As
interpretações classistas do social, que postulavam a compreensão do
processo histórico como sucessão de lutas de classes, e a valorização de
categorias, como, por exemplo, “modo de produção”, para interpretar
a realidade colocaram em segundo plano as especificidades históricas
de cada contexto. Além disso, o conceito de ideologia foi considerado
insuficiente, dado seu vínculo com as determinações de classe e com o
mecanismo de dominação e subordinação. Como já observara Harvey
(1993), o que se criticava era a perspectiva do materialismo histórico
geográfico como um corpo fixo e fechado de compreensões.
Não obstante, as análises fundamentadas no materialismo histórico
e dialético evoluíram em outras perspectivas e possibilitaram análises da
realidade social mais abertas, dinâmicas e flexíveis, que reconhecem a
diferença, a alteridade, aspectos da organização social como raça, gênero,
religião, a importância das práticas estéticas e culturais e a importância da
análise da produção de imagens e das dimensões do tempo e do espaço.
Essa redefinição do campo da análise marxista possibilitou apreender
a significação das transformações que estão ocorrendo na organização
das sociedades. No interior dessa tendência, podem ser mencionados os
trabalhos de Harvey (1993) e Soja (1993), entre outros.
Nessa temporalidade, tornou-se gradativamente expressivo o interesse
de um maior número de geógrafos pela Geografia Humanista e
Cultural, que propõe, com base na fenomenologia e no existencialismo,
interpretar os aspectos especificamente humanos do mundo vivido e enfatizar
o lugar concreto das ações humanas, a subjetividade, os valores,
os sentimentos, a cultura, a experiência, o simbolismo, a identidade, a
intersubjetividade, a comunicação e a intuição. Nas palavras de Mello
(1990, p. 92),
Com base na experiência vivida, a Geografia humanista objetiva
interpretar o sentimento e o entendimento dos seres humanos a
respeito do lugar [...] centraliza no homem, enquanto ser pensante,
uma importância vital, visando a compreender e a interpretar os
seus sentimentos e entendimentos do espaço e, até mesmo, como a
simbologia e o significado dos lugares podem afetar a organização
escolar.
Essa tendência chamou a atenção dos especialistas do ensino de
Geografia para a importância da valorização da dimensão afetiva, do
290 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
significado do lugar, do sentimento de pertencimento e das representações
do espaço vivido no processo de conhecimento do aluno. Nessa linha,
Frèmont (1997), ao defender a ideia de que o trabalho pedagógico deve
estar relacionado ao espaço vivido, sugere que a realidade do aluno deve
ser a referência para a compreensão do espaço em suas diferentes escalas.
Segundo esse autor, as representações, o espaço vivido e a Geografia da
percepção constituem um belo campo de pesquisa contemporânea para
o ensino de Geografia. Nesse processo, Frèmont (1997) destaca a importância
de se levar em conta o espaço dos outros para tornar objetivo o
cruzamento das representações acumuladas. Além dessa autora, podem
ser considerados como pertencentes a essa abordagem os trabalhos de
Ballesteros (1992) e Yi-fu-Tuan (1980), entre outros.
No campo do ensino, uma característica da década de 1990 foi o
considerável crescimento das pesquisas voltadas para o ensino e a aprendizagem
de Geografia. Atestam isso os levantamentos sobre a produção
de teses e dissertações realizados por Cavalcanti (1998), Pontuschka
(1999) e Zanatta (2003).
O levantamento realizado por Cavalcanti (1998) e Zanatta (2003)
demostra que nessa década foram produzidos 46 trabalhos sobre o ensino
de Geografia. Entre estes, mais de 40% dos títulos se referem a questões
de metodologia e prática de ensino de Geografia nos níveis de Ensinos
Fundamental e Médio. Da mesma forma, o levantamento de Pontuschka
(1999) sobre o acervo de teses e dissertações do departamento de
Geografia e de Educação da Universidade de São Paulo (USP) também
evidencia que, na década de 1990, há maior investimento nas pesquisas
relacionadas à metodologia de ensino, tais como: educação ambiental na
visão do geógrafo; o ensino de Geografia e os métodos interdisciplinares;
o desenvolvimento de conceitos como o de paisagem; a linguagem das
imagens na construção de conceitos; a importância do vídeo em sala de
aula etc. Em geral, essas pesquisas mostram os problemas do ensino de
Geografia e apresentam propostas alternativas que indicam novos encaminhamentos
para a reestruturação da Geografia Escolar.
Também merece destaque a preocupação – por parte dos autores
que investigam Geografia escolar – no intuito de ampliar a discussão sobre
o ensino de Geografia para além da simples definição de conteúdos, de
vincular o ensino de Geografia a uma reflexão pedagógica e de considerar
o aluno sujeito do processo de ensino e aprendizagem, conforme
atestam, por exemplo, as propostas de Vesentini (1987), Pereira (1995),
Santos (1995) e Cavalcanti (1998, 2002), entre outros.
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 291
Outro acontecimento da década de 1990 foi a divulgação e aprovação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em
dezembro de 1996. Nesse contexto, estabeleceu-se, de forma bem mais
incisiva, a discussão sobre questões relacionadas à formação de professores
e de todos os profissionais da educação. Como resultado dessas
discussões, foi implementada uma política de formação de professores,
estabelecendo alteração no tempo mínimo para formação de professor e
no eixo central de formação docente, sendo uma de suas questões mais
polêmicas a impossibilidade de existir duas habilitações nos projetos
que formam professores. Nesse contexto, implementou-se no país um
processo de reforma dos cursos de Graduação e, essencialmente, da
formação de professores.
Em meio a esses acontecimentos, ocorre a divulgação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), em 1998, pelo Ministério da
Educação, particularmente da proposta de Geografia consolidada neste
documento.
A divulgação e a implantação dos PCNs de Geografia reacenderam
a discussão sobre o modo de pensar, fazer e ensinar Geografia apresentada
na proposta de Geografia deste documento, discussão que foi alimentada
por especialistas da área como Oliveira (1999) e Pontuschka (1999). Todavia,
importa destacar que o posicionamento dos geógrafos diante dos
PCNs é bastante diversificado. Os que apoiam o documento argumentam
a favor da necessidade de uma orientação curricular nacional, seja pelo
caráter democrático de indicação de conteúdos básicos, que devem ser
transmitidos a todos os jovens, seja pela diversidade regional de nosso
país. Os que o recusam alegam que um currículo deve nascer no seio
dos processos culturais no quais as pessoas vivem e, por conseguinte,
valorizar as culturas particulares, as diferenças, as diversidades de classe
social e gênero, os diferentes discursos e subjetividade. Em função dessa
associação entre currículo e diferenças, considera-se que não faz sentido
o currículo oficial.
Como resultado da discussão sobre a proposta de ensino de Geografia
apresentada nos PCNs, surgiram modos alternativos e mais autônomos
de trabalho com o ensino de Geografia sem vínculo explícito com
a orientação da proposta oficial. Daí a importância de se compreender os
pontos comuns e, talvez, revelar as diferenças entre seus autores, já que
todas elas se colocam como orientações de reestruturação da Geografia
Escolar para que ela cumpra melhor sua tarefa social. Embora deva ser
considerado positiva a existência de diferentes posições sobre o que deve
292 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
ser a Geografia Escolar, considero importante buscar pontos comuns
entre essas orientações (oficiais ou não), já que todas elas constituem
tentativas de reestruturação da Geografia Escolar.
AS PROPOSTAS DE ENSINO DE GEOGRAFIA ELABORADAS
ENTRE 1995 E 2005
As orientações mais recentes de reestruturação da Geografia
Escolar para que ela cumpra melhor sua tarefa social encontram-se explicitadas
em propostas de ensino alternativas e oficiais. Em relação às
propostas oficiais, a opção nesse estudo foi pelos PCNs de Geografia,
por constituírem uma das mais expressivas iniciativas do Ministério da
Educação da década de 1990, dentro de um programa de reforma educacional
no Brasil, no qual se destaca a elaboração de um currículo básico
nacional. Quanto às propostas alternativas, ou seja, propostas elaboradas
por pesquisadores das universidades, a opção se deu pelas contribuições
de alguns especialistas que têm se destacado na pesquisa sobre o ensino
de Geografia, como Cavalcanti (1998, 2002), Callai (1998a, 1998b,
1998c, 1999), Kaercher (1997, 1998a) e os PCNs (SEE, 1998a, 1998b).
A seleção desses autores é arbitrária e certamente incompleta. Resulta de
um breve levantamento sobre as propostas de ensino de Geografia. Não é
minha pretensão fazer aqui um mapeamento completo dessas propostas.
É uma tarefa difícil, porém, necessária para ampliar a compreensão das
propostas de ensino que orientam a prática de professores de Geografia
do Ensino Fundamental.
Em que pesem as diferenças entre os fundamentos teórico-metodologicos
das propostas mencionadas, há entre elas uma preocupação
comum no sentido de ampliar a discussão sobre o ensino de Geografia
para além da simples definição dos conteúdos. Outro ponto comum é o
fato de explicitarem as possibilidades de a Geografia e a prática de ensino
cumprirem seu papel na formação da cidadania.
As ideias que despontaram e adquiriram expressividade no âmbito
do ensino de Geografia a partir do final da década de 1990 e na primeira
metade do ano 2000 são as seguintes:
• seleção dos conceitos geográficos básicos para estruturar os conteúdos
de ensino;
• valorização das diferentes dimensões dos conceitos geográficos para a
construção de atitudes, ações e valores que norteiam comportamentos
socioespaciais;
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 293
• a “Geografia do aluno”, ou seja, as representações sociais deste como
referência do conhecimento geográfico construído em sala de aula;
• o reconhecimento da relevância da dimensão afetiva no processo de
conhecimento;
• a articulação dos componentes do processo de ensino, ou seja, objetivos,
conteúdos e métodos;
• o construtivismo como atitude básica do trabalho com a Geografia
Escolar.
No balanço geral dessas propostas, pode-se perceber que a elas
foram incorporados temas relativos a cultura, cidadania, diferença,
afetividade, subjetividade, valores, gênero, representações do espaço
vivido e alteridade, entre outros. Além disso, constata-se a referência
aos conceitos básicos da análise geográfica, tais como o espaço, o lugar,
a paisagem, o território e a região, entre outros, como norteadores de
toda estruturação dos conteúdos de ensino. Conforme registrado, tanto os
temas como os conceitos se fazem presentes nas abordagens geográficas
que fundamentam a produção atual sobre o ensino de Geografia, como
Geografia Crítica e Geografia Humanista/Cultural.
Então, onde estão as diferenças das propostas – oficial e alternativas
– para o ensino de Geografia se essas diferenças não podem ser
apreendidas com base nos elementos mais gerais da fundamentação
teórica das concepções críticas da Geografia?
Um ponto de partida para se responder essa questão consiste na
identificação da concepção de Geografia, da concepção pedagógico-
-didática, da compreensão sobre a relação entre o local e o global, da
relação entre a realidade natural e social, entre outras concepções que
possibilitam estabelecer um vínculo, ainda que de forma bem ampla,
entre as propostas e as abordagens predominantes na década de 1990 e
primeira metade dos anos 2000.
CONCEPÇÃO DE GEOGRAFIA
Tomando como referência a concepção de Geografia explicitada
nas propostas em estudo, pode-se dizer que, em geral, as propostas alternativas
apresentam elementos que indicam seu vínculo a uma concepção
crítico-dialético. Dentre as principais ideias postuladas por essa abordagem,
pode-se mencionar a de movimento, a compreensão do espaço
como produto social, a relação sociedade/natureza em sua historicidade,
a de contradição e a compreensão da Geografia como ciência social.
294 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
Essa concepção pode ser inferida com base nos trechos seguintes das
propostas em estudo:
O cerne desta ciência, [é] o ‘espaço geográfico’ entendido como
aquele espaço ‘fruto do trabalho humano’ na necessária e perpétua
luta dos seres humanos pela sobrevivência. Nessa luta o
‘homem usa, destroi/constrói/modifica a si e a natureza’. O homem
faz Geografia à medida que se faz humano, ser social. Fica
claro que a relação sociedade-natureza é indissociável/eterna
(KAERCHER, 1998a, p. 11).
‘A Geografia é uma a ciência social’ [...] que estuda, analisa e
tenta explicar (conhecer) ‘o espaço produzido pelo homem’. Ao
estudar certos tipos de organização do espaço, procura compreender
as causas que deram origem às formas resultantes das
relações entre sociedade e natureza. Para entender essas, faz-se
necessário ‘compreender como os homens se relacionam entre si’
(CALLAI, 1998a, p. 55).
[...] ‘Geografia é uma ciência que estuda o espaço produzido e
reproduzido pela sociedade ao longo da História’. Ou seja, é o
estudo do espaço geográfico, entendendo por espaço ‘um conjunto
de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento’
(CAVALCANTI, 1998, p. 127).
O que foi exposto evidencia que os autores concebem a Geografia
como uma ciência social e o espaço geográfico como resultado de ações
sociais concretas da sociedade que o produziu. Além disso, evidencia um
eixo fundamental da análise marxista, isto é, a noção de historicidade dos
fenômenos, a qual, para a concepção fenomenológica, não é importante.
No que se refere aos conceitos básicos da Geografia, Kaercher
(1998a), Callai (2000) e Cavalcanti (1998) recomendam trabalhar o conceito
de lugar como resultado de um processo dialético entre a mundial
idade em constituição e a especificidade histórica do particular. Nesse
processo, o lugar como meio de manifestação da globalização recebe o
impacto das transformações provocadas pela globalização em função de
suas particularidades, e, ao mesmo tempo, a eficácia das ações globais
encontra-se na dependência das possibilidades da materialidade de suas
ações nos lugares. Do mesmo modo, o lugar, como manifestação da
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 295
identidade, do coletivo e do subjetivo, pode desenvolver resistências à
globalização. Nas palavras dos autores mencionados,
[...] mais importante do que localizar é relacionar os lugares e as
sociedades que ali habitam, sempre tendo em mente a globalização
da sociedade mundial que cada vez mais se integra, ainda que
com diferentes poderes e direitos (KAERCHER, 1998a, p. 19).
É o nível do local que traz em si o global, assim como o regional
e o nacional. [...]. A globalização e a localização, fragmentando
o espaço, exigem que se pense dialeticamente essa relação, pois,
‘cada lugar é, à sua maneira, o mundo (CALLAI, 2000, p. 84).
[...] a compreensão da globalização requer a análise das particularidades
dos lugares, que permanecem, mas não podem ser
entendidas nelas mesmas. O que há de específico deve ser encarado
na mundialidade, ou seja, o problema local deve ser analisado
enquanto problema global [...] (CAVALCANTI, 1998, p. 90).
Embora o posicionamento dos autores anteriormente mencionados
indiquem o vínculo de suas ideias com a concepção dialética, existe
entre eles diferenças de análises e de propostas, explicitadas por meio
do vinculo a determinadas diretrizes pedagógico-didática, conforme
explicitaremos a seguir.
CONCEPÇÃO PEDAGOGICO-DIDATICA
O foco da discussão de Cavalcanti (1998) é a metodologia de
ensino. Para tratar essa questão, a autora articula saberes da Geografia
com o pensamento de Vigotsky e com as contribuições da pedagogia
crítico-social dos conteúdos. Seguindo esta orientação, atribui significado
especial à construção dos conceitos geográficos pautados nas representações
sociais dos alunos, construídas com base em seu cotidiano e na
relação destes com os conceitos científicos.
Na produção de Kaercher (1997), percebe-se maior preocupação
com questões relacionadas com a prática de ensino e com a construção
do conhecimento por meio de temas geradores relacionados
aos conceitos e vivências espaciais cotidianas dos alunos, como,
por exemplo, problemas de um lugar, conflitos, questão ecológica,
296 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
discriminações racial, da mulher e dos homossexuais, extermínio de
grupos indígenas, questões urbanas, entre outros. Isso significa que,
para Kaercher (1997), o ensino de Geografia deve ter como ponto
de partida a sociedade local e suas contradições, de modo a permitir
uma leitura plural e aberta do mundo para que o educando tenha uma
tomada maior de consciência de sua própria realidade. Daí, a proposição
de um ensino comunitário, ligado aos costumes e à cultura
local da população a ser educada. O que Kaercher (1997) propõe é
articular a concepção dialética de Geografia com as contribuições de
Paulo Freire. Em suas análises e reflexões, também é possível perceber
a preocupação em superar uma visão de ensino reprodutor de
conhecimento e em assumi-lo como atividade de construção coletiva
do saber. Ao postular a ideia de conhecimento como um construção
do sujeito ante o mundo, ele recomenda:
Combater a visão de currículo que privilegia a informação e a
quantificação ou a fragmentação do saber. A criação deve ser
enfatizada. Aliar a informação com a reflexão. Buscar mais de
uma versão para o fato. Mostrar os conflitos de interesse as mensagens
nas entrelinhas dos textos (KAERCHER, 1997, p.136-7).
Por sua vez, Callai (1998a) demonstra maior preocupação com
a questão dos conteúdos a serem trabalhados nas séries iniciais do
Ensino Fundamental e, dentre esses, destaca o município e a cidade.
A autora sugere que o trabalho com esses conteúdos favorece o
desenvolvimento de conceitos como espaço, paisagem, sentimento
de pertencimento ao lugar, identidade, diferença e cultura, numa
perspectiva interdisciplinar.
Nos PCNs de Geografia, o que se verifica é que este documento
não explicita com clareza sua concepção de Geografia. Nele, é possível
identificar elementos que caracterizam diferentes concepções de Geografia,
o que conduz a múltiplas interpretações. A exemplo disso, alguns
elementos que indicam o vínculo desse documento com a Geografia
Humanista podem ser identificados na medida em que seus autores enfatizam
a importância de se trabalhar as dimensões subjetivas e, portanto,
singulares “[...] do espaço geográfico e as representações simbólicas que
os alunos fazem dele” (SEE, 1998b, p. 61). Outro exemplo refere-se ao
entendimento do conceito de lugar como espaço que se torna familiar ao
indivíduo, o espaço vivido, experienciado, conforme a seguir:
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 297
[...] lugar traduz os espaços com os quais as pessoas têm vínculos
afetivos: uma praça onde se brinca desde criança, a janela de
onde se vê a rua, o alto de uma colina de onde se avista a cidade.
O lugar é onde estão as referências pessoais e os sistemas de valores
que direcionam as diferentes formas de perceber e construir
a paisagem (SEE, 1998b, p. 29).
Da mesma forma, elementos da concepção dialética podem ser
identificados nos PCNs de Geografia quando seus autores se referem ao
objetivo da Geografia, aos conceitos de paisagem e de espaço e à relação
entre o local e o global. Alguns trechos do documento servem para ilustrar:
[...] o espaço na Geografia deve ser considerado como uma
totalidade dinâmica em que interagem fatores naturais sociais,
econômicos e políticos . [...] a escala local/global na abordagem
de um tema deverá estar sempre levando em consideração que
existe uma reciprocidade na forma como as duas se interagem.
[...] O importante é que não se perca essa relação dialética na
explicação, mesmo porque, na realidade atual os meios de comunicação
colocam a informação de forma instantânea e simultânea.
Portanto, apresentam o mundo onde a dicotomia do local com o
global cada vez menos é percebida. [...].
Quando se pensa aquilo que ocorre num determinado local e as
influências que chegam de fora, deve-se admitir que existem forças
internas específicas desses locais que podem atenuar, reforçar ou
mesmo resistir a essas influências (SEE, 1998b, p. 28-31).
A Geografia Escolar expressa nos PCNs recomenda o construtivismo
como orientação básica do trabalho com a Geografia Escolar. Essa
recomendação pode ser inferida nos seguintes trechos:
[...] uma opção metodológica que considera a atuação do aluno
na construção de seus próprios conhecimentos valoriza suas
experiências, seus conhecimentos prévios e a interação professor-
-aluno e aluno-professor buscando essencialmente a passagem
de situações em que o aluno é dirigido por outrem a situações
dirigidas pelo próprio aluno. [...]
As abordagens atuais da Geografia têm buscado práticas pedagógicas
que permitam apresentar aos alunos os diferentes aspectos
298 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
de um mesmo fenômeno em diferentes momentos da escolaridade,
de modo que os alunos possam construir compreensões novas e
mais complexas a seu respeito (SEE, 1998b, p. 89, 115).
Espera-se que, ao longo dos oito anos do ensino fundamental,
os alunos construam um conjunto de conhecimentos referentes
a conceitos, procedimentos e atitudes relacionadas à Geografia
(SEE, 1998b, p. 121).
Nos PCNs de Geografia, alguns conceitos são recomendados como
norteadores de toda a estruturação dos conteúdos da 1ª fase do Ensino
Fundamental (1º e 2º ciclos) e da 2ª fase (3º e 4º ciclos), como lugar, paisagem
e território e região. Sobre esses conceitos, o documento esclarece:
Outro critério fundamental na seleção de conteúdos refere-se
às características de análise da própria Geografia. Procurou-se
delinear um trabalho a parir de algumas categorias consideradas
essenciais paisagem, território, lugar e região. A partir delas
e que podemos identificar a singularidade do saber geográfico
(SEE, 1998b, p. 139).
Ante essas evidências, entendemos que a proposta dos PCNs de
Geografia resulta de uma postura híbrida, uma vez que sua construção
tem como eixo uma diversidade de concepções geográficas fato que
dificulta aos professores estabelecer limites e diferenças entre o oficial
e o alternativo.
Por fim, vale ressaltar que as considerações feitas nesse item
evidenciam, ainda que de forma bastante ampla, a diversificação das
concepções teóricas, tanto da Geografia, quanto pedagógico-didáticas,
que passaram a fundamentar as propostas de reestruturação da Geografia
Escolar na década de 1990. Vejamos a seguir o que mostram as pesquisas
sobre a maneira pela qual essas propostas estão sendo incorporadas ao
ensino de Geografia.
AS PRÁTICAS DE ENSINO DE GEOGRAFIA
Conforme mencionado, as pesquisas sobre o ensino de Geografia
aumentaram quantitativa e qualitativamente nas últimas décadas do
século XX. Gradativamente, tem-se constatado um incremento na pre,
Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 299
ocupação de se conhecer mais e melhor o papel da Geografia Escolar e
a maneira como se realiza seu ensino e sua aprendizagem. Mas o que
dizem as pesquisas sobre a prática de ensino dessa disciplina?
Estudos realizados por Kaercher (1997, p. 67) confirmam que a
renovação do ensino da Geografia brasileira já possui “[...] quinze anos,
mas o seu sopro renovador ainda está distante da maioria das salas de
aula de primeiro e segundo graus”. Da mesma forma, Cavalcanti (1998,
p. 21) chama a atenção para duas questões fundamentais:
[...] os modestos efeitos na prática de ensino dos professores
de Geografia, comparados com os questionamentos, análises e
propostas ‘renovadas’ feitos em nível teórico e a reflexão dessa
prática a partir de uma referência pedagógico-didática, também
incipiente.
Em relação aos conteúdos geográficos, Braga (1996) e Gebran
(1996) afirmam que, na maior parte das escolas brasileiras, predomina
uma prática essencialmente tradicional.
Segundo Braga (1996, p. 216), ainda hoje é comum a ideia de que
“[...] a Geografia deve estudar as coisas [...]”, ou seja, a montanha, o rio,
a floresta, o solo, a indústria, a cidade, os transportes etc. Identificá-las
e descrevê-las são atividades que se encontram presentes na prática
cotidiana dos estudos geográficos nas escolas.
Gebran (1996) constatou que, nas séries iniciais do primeiro grau,
os conteúdos são abordados de forma superficial, compartimentada e
descontextualizada, favorecendo o desenvolvimento de atividades de
caráter mecânico e repetitivo que dificultam a construção de noções e
conceitos básicos. Verificou-se ainda que algumas tentativas de inovação
sugerem atividades de observação do meio, com base no contexto do
aluno. Contudo, na prática, essa ação se limita à reprodução de textos,
às descrições formais e informativas que visam à memorização. Nas
palavras de Gebran (1996, p. 9),
[...] as análises do processo no cotidiano da sala de aula revelam
que se insiste em um ensino de Geografia preocupado com a supervalorização
da memória, [...] em detrimento do entendimento
e da compreensão. Esse processo, de certa forma, leva a uma
paralisia da atitude crítica do aluno e reforça, cada vez mais, a
incapacidade de estabelecimento de relações entre os conhecimen300
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
tos adquiridos, sem evidenciar as condições sócio-econômicas,
culturais e históricas da realidade social.
Carvalho (1998, p. 88), por sua vez, em pesquisa com professores,
verificou que, em relação aos conteúdos, há algumas alterações
que evidenciam a repercussão das mudanças propostas para o ensino
de Geografia. Para exemplificar, a autora ressalta que, durante o estudo
das regiões e da população brasileira, as professoras evitaram a
memorização de nomes, “[...] questões políticas foram aventadas e não
se apresentou uma sociedade homogênea”. Entretanto, a autora indica
também como problema o distanciamento do conteúdo da realidade.
Em suas palavras,
A conclusão a que, infelizmente, se chega é que as mudanças, mesmo
incluindo alguns tópicos, como os citados no parágrafo anterior,
sempre percebidos como ausentes por aqueles que criticaram as
Geografias tradicionais, não trouxeram vida e nem brilho aos
novos conteúdos.
A esse respeito, Pontuschka (1999, p. 113) argumenta que,
mesmo sendo a crítica ao ensino de Geografia da primeira metade do
século XX feita pelo fato de os geógrafos se preocuparem sobretudo
com os conteúdos escolares, ou seja, o que ensinar e não como ensinar,
“[...] ainda não podemos dizer que os métodos de ensino mais
inovadores e democráticos hoje estão aplicados nas escolas do país”.
Pedagogicamente, a problemática que diz respeito à relação
conteúdo/método de ensino tem resultado em sérias dificuldades enfrentadas
na sala de aula. Cavalcanti (1998, p. 12), ao comentar acerca das
deficiências do ensino e da aprendizagem, faz a seguinte ponderação:
[...] os alunos não conseguem formar um raciocínio geográfico
necessário à sua participação ativa na sociedade; não
conseguem assimilar de modo autônomo e criativo as bases
da ciência geográfica que propiciem a formação de convicções
e atitudes a respeito da espacialidade da prática social. Também
não conseguem formar relações entre os conteúdos que
são transmitidos nas aulas de Geografia e as determinações
espaciais que permeiam, direta ou indiretamente, sua prática
social diária.
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 301
Outro problema mencionado por Souza e Katuta (2001, p. 124)
diz respeito ao fato de a Geografia Crítica ter valorizado, num primeiro
momento, a discussão sobre o método de leitura da realidade. Na opinião
desses autores, o movimento crítico relegou a segundo plano as
reflexões sobre os conhecimentos técnicos cartográficos. Além disso, a
crítica sobre os conteúdos tradicionais acabou contribuindo para que o
professor entendesse que seria necessário abandonar “[...] tudo o que fazia
parte da ‘Geografia Tradicional’ para se tentar construir uma Geografia
realmente crítica”.
A relação Geografia/Cartografia é um assunto que tem merecido
especial atenção dos pesquisadores que buscam propor práticas mais adequadas
para o desenvolvimento da habilidade de mapear e ler a realidade.
Kaercher (1997) e Cavalcanti (1998), em pesquisas realizadas com
alunos do Ensino Fundamental, constataram forte associação entre os
termos Geografia e mapa. Os dados levantados permitiram deduzir que
o mapa é a imagem mais forte da Geografia na escola.
De acordo com Kaercher (1997, p. 108), as palavras que mais
se destacaram no depoimento dos alunos foram: “[...] Mapa, Terra (=
planeta), população, mundo, [...] clima, relevo, vegetação, hidrografia”,
o que demonstra o quanto a Geografia tradicional de cunho positivista
permanece viva na prática dos professores. Não obstante, o autor ressalta
que existem professores produzindo uma Geografia renovada e diferenciada
da tradicional, assim como alguns livros didáticos.
Nesse sentido, é oportuna a observação de Braga (1996) segundo
a qual a dificuldade de objetivação do discurso crítico se explica pela
fragilidade teórica de seus mensageiros em relação a um conteúdo científico
que possibilite decodificar a realidade. Essa constatação indica
a necessidade de se investir teórica e praticamente na formação dos
professores de Geografia.
A pesquisa de Cavalcanti (1998, p. 171) confirma a dificuldade
das professoras em dominar teoricamente os conceitos básicos da ciência
geográfica. Os depoimentos demonstraram que os conceitos definidos
por boa parte das professoras expressaram simplesmente vivências de
seu cotidiano. Assim, a autora ressalta que as formulações teóricas dos
professores “[...] foram similares às dos alunos, ressalvadas as diferenças
de idade e de maturidade”. Para ilustrar, destaca o entendimento sobre
o conceito de paisagem de uma professora que cursava o último ano do
bacharelado: “[...] paisagem lembra natureza em geral” e, para isso, a
caracteriza pelo que se vê “da janela de um carro, numa viagem [...]”. A
302 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
mesma ideia aparece quando diz: “[...] pro lado de Senador Canedo tem
um morro lá que chama bastante atenção [...]”.
Da mesma forma, as situações que se tem vivenciado com professores
do Ensino Fundamental e alunos universitários demonstram que
uma versão empobrecida da Geografia permanece enraizada na prática
de um significativo número de professores, nas representações dos alunos
e da sociedade como um todo, embora seja bastante significativo
o avanço da reflexão teórica e da considerável literatura que apresenta
encaminhamentos ao modo de trabalhar essa ciência como matéria escolar.
Percebe-se também que entre os professores universitários ainda
é expressiva a compreensão da escola como lugar da simplificação
didatizada da produção geográfica.
O que foi exposto demonstra com clareza sérios problemas
relacionados ao ensino de Geografia, tanto nos níveis Fundamental e
Médio, quanto no universitário. Conforme evidenciado, a atitude dos
professores é de total passividade ante os avanços das reflexões sobre
a ciência geográfica e seu ensino. Dessa forma, o ensino de Geografia
permanece alheio ao seu papel central, ou seja, promover o desenvolvimento
mental dos alunos.
A consideração que se faz às propostas de ensino de Geografia e a
algumas expressivas pesquisas que apresentam aspectos da realidade do
ensino dessa matéria permite extrair considerações sobre os fundamentos
das propostas da Geografia Escolar e de sua prática de ensino.
No que diz respeito às propostas de ensino, percebe-se uma tendência
de flexibilidade em relação às orientações teórico-metodológicas da
ciência geográfica, ou seja, o reconhecimento do potencial das diferentes
tendências do pensamento geográfico. Isso se explica pelo fato de as propostas
de ensino produzidas na década de 1990 terem incorporado temas
ligados ao papel da cultura nas aprendizagens, à diferença, à linguagem, ao
papel da mídia, à interdisciplinaridade entre outros. Nesse sentido, pode-se
inferir que a tendência marcante hoje nas propostas de ensino de Geografia
se encaminha para uma multiplicidade de teorizações e de práticas.
As propostas analisadas demonstram também a preocupação de
seus autores em ampliar a discussão sobre o ensino de Geografia para
além dos conteúdos. Nesse sentido, as propostas poderiam se beneficiar,
para melhor compreensão do processo de ensino, das produções no campo
da Pedagogia e, especificamente, da Didática.
Em relação às práticas, a constatação mais evidente, salvo algumas
exceções, é de que o ensino de Geografia continua ainda com fortes traços
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 303
do ensino tradicional, tal como já observado e apresentado em pesquisas
que abordam a presente temática. Além da presença daqueles traços mais
comuns da pedagogia tradicional, como aula expositiva, memorização e
desconsideração do mundo do aluno, as pesquisas mostram um ensino
desinteressante, pouco atrativo, em que os conteúdos não mobilizam os
alunos a se apropriarem de conceitos geográficos para compreensão e
atuação na realidade, como deveria fazer um cidadão.
Percebe-se, também, que a situação real do ensino de Geografia na
década de 1990 mostra que as propostas feitas em torno do papel transformador
da Geografia Crítica foram modestas e pouco expressivas. Em
contraposição, verifica-se que, ao longo da década de 1990, aumentou
consideravelmente a participação de geógrafos formadores de professores
na pesquisa dirigida ao ensino de Geografia, com visível interesse em
buscar, na Pedagogia e na Didática, aportes necessários à melhoria da
formação do professor de Geografia.
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THEORETICAL REFERENCES OF THE SCHOOL OF GEOGRAPHY AND ITS
PRESENCE IN RESEARCH ON TEACHING PRACTICES
Abstract: in order to support the discussion in the discipline Didactics of Geography,
the article presents a reflection on the theoretical and methodological fundamentals
proposals for teaching of the geography, as well as an overview of the results of researches
on teaching practice for teachers of geography at elementary school. The findings
indicate the understanding that the proposals under study can be situated within two
approaches, the historical-critical-dialectic and phenomenological-hermeneutic. Regarding
practices, what is perceived that there is a gap related to academic production
on the teaching of geography.
Key Words: Geography, school of geography, educational practice, didactics
* Professora no Programa de Pós-graduação stricto sensu em Educação da Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC/Goiás), na linha Teorias da Educação e Processos Pedagógicos

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Geografia Criativa


O professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Nestor André Kaercher, mantém contato direto, em suas aulas, com futuros professores de geografia. Com licenciatura em geografia, mestrado em educação e doutorado em geografia humana, ele leciona, entre outras, as disciplinas de prática de ensino em geografia voltadas ao ensino fundamental e ao ensino médio. Também atua na área de estágio de docência em geografia, tanto para o ensino fundamental quanto para o ensino médio.
Sua experiência profissional inclui o ensino de geografia para alunos da educação básica, tanto no ensino regular como no supletivo (Educação de Jovens e Adultos) e a participação em cursos nas áreas de extensão e de pós-graduação.
Em entrevista ao Jornal do Professor, Kaercher diz que a paixão pela docência e o respeito e a curiosidade pelos alunos são qualidades fundamentais de um bom professor. Para ele, o mestre deve manter um diálogo interessado com os estudantes, ouvindo o que eles têm a dizer e fazendo perguntas que despertem seu interesse.
Jornal do Professor – Quais as qualidades necessárias a um bom professor de geografia?
Nestor André Kaercher – Creio que, no geral, são as mesmas dos outros professores: curiosidade, interesse pela disciplina, uma boa dose de paixão e idealismo, pois isso te leva a estudar, a buscar melhorias na tua docência, enfim, mantém tua vivacidade na profissão. Fundamental é ter profundo respeito e curiosidade por teus alunos, gostar e querer ouvi-los, fazê-los, de fato, partícipes da tua aula. O diálogo interessado, com boas perguntas norteadoras pode levar a gente a explorar melhor o potencial deles, que sempre é surpreendente. Claro, poderia listar outras coisas, mais técnicas como planejar a aula, trazer materiais diversificados, etc, mas no fundo, se tu não tiveres paixão pela docência, e, por que não, pelos alunos, só o conhecimento técnico não vai te levar muito longe.
JP – Quais os recursos e ferramentas mais importantes para uma boa aula de geografia?
NAK – Quanto mais recursos, melhor. Complementam, facilitam a vida do professor. Mas, se o professor não tiver boa formação e alguma paixão, não adianta só o recurso material. A aula tende a ser burocrática.
JP – Na sua opinião, atlas e mapas impressos ainda são válidos nesses tempos de internet e conteúdos digitais?
NAK – A internet ajuda, mas ainda não está tão disseminada, vai crescer sempre (ainda bem), mas livro, papel, escrita, reflexão séria (não sisuda), isso é fundamental numa escola, e, por que não, nas nossas casas. A internet é meio, não é fim. Com isso quero dizer: sejam bem vindos computadores e outras novidades midiáticas na escola. Claro. Mas se não tivermos bons professores, com boa formação, motivados (e bem tratados, claro), o computador fica subutilizado. Nunca, mesmo na educação a distância, os professores serão secundários. Um bom professor faz muita (e boa) diferença na educação das pessoas.
JP – O senhor acredita que é importante que os professores de geografia participem de cursos de formação continuada, levando em conta, principalmente, as mudanças tecnológicas que estão ocorrendo?
NAK – Acho que a resposta acima já contempla o que se pergunta. Estudar, ler, trocar ideias em fóruns, encontros, cursos sempre é uma oportunidade de aprimorar conhecimento, e, por que não, reencontrar os pares, pegar deles ideias e energias para mantermos viva a chama, a paixão pela docência e pelos discentes.
JP – Os professores de geografia saem bem preparados das instituições de nível superior? Por quê? (Em caso negativo, o que seria necessário para isso)
NAK – A resposta é Sim e Não. Sabemos das muitas lacunas em nossa formação. Poderíamos listar muitos erros que nós, formadores de professores cometemos na universidade, mas sejamos propositivos e otimistas: a universidade é local para percebermos a fragilidade de nossa formação, a necessidade de uma constante aprendizagem, além de nos fornecer pistas e contatos para continuarmos a buscar sanar estas lacunas. A universidade nunca vai te dar tudo (não existe o 'tudo', o bom professor 'já formado'), mas pode te dar pistas para buscares pontos de partida pra seguir em frente. O que seria necessário? Muita coisa, mas também isso é um processo que não finda. Sempre estaremos necessitando reinventar nossa prática, refletir sobre o que se faz, mas, claro está, não basta conhecimento técnico ou equipamentos.
JP – É importante que o professor de geografia leve seus alunos para visitas in loco e incentive pesquisa de campo? De que forma?
NAK – Claro. Tudo que se puder oferecer ao aluno é ponto positivo. Conhecer in loco os locais é fundamental, mas isso também requer uma preparação (e recursos) que, normalmente, os docentes não têm. Mas, como negar a belezura e o poder de imaginação e “perguntação” de uma saída pra fora da escola, quando o professor sabe estimular o olhar e a interpretação da meninada?

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Geografia do custo zero


CONHEÇA E REVELE-SE ESTUDANDO A CIDADE: EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS PARA PENSAR NOSSA ONTOLOGIA

NESTOR ANDRÉ KAERCHER[1]

 Tu, que me lês, estás seguro de entender minha linguagem?
(BORGES, Biblioteca de Babel, p. 78)

Situando o leitor
Este texto é composto por duas partes. A primeira contém três depoimentos comentados sobre ser professor, o ato de educar e aprender. Na segunda parte propõem-se atividades didáticas que tem a cidade como tema de reflexão. Busca-se atividades que utilizem recursos simples mas que visam discussões e reflexões de caráter ontológico.
Procuro discutir a infinda busca de modelos desejáveis de ser professor e de ser aluno. A partir destes depoimentos surgem algumas questões sobre a identidade docente: o que buscamos e valorizamos para sermos considerados – por nós e pelos outros – bons professores? Que modelos temos em mente de um bom aluno? Como tentamos construir, operacionalizar estes modelos na prática cotidiana da sala de aula? Que valores são buscados? Que práticas pedagógicas ajudam nesta busca? Mesmo não tendo respostas consensuais ou corretas, busca-se qualificar a dialogicidade entre docente e discente, além de aproximar a geografia de uma prática reflexiva sobre nossos papéis sociais e profissionais.
Na segunda parte do texto proponho também analisar algumas atividades didáticas que tem a cidade, no caso Porto Alegre, como pretexto para que o aluno reflita sobre os conceitos de lugar, território e de paisagem. São quatro as atividades que propostas aos meus alunos (dos cursos de Geografia e Pedagogia) para que repensem a sua relação, seja com a cidade, seja consigo mesmo: 1. mapa informal do percurso casa – faculdade; 2. escolha de fotografia ‘cartão-postal’ e de fotografia tiradas por eles mesmos que retratem a cidade do ponto de vista bem pessoal; 3. criação de um trabalho de campo imaginário de um turno onde o aluno escolherá três pontos da cidade que ele queira apresentar como significativos de apresentar sua cidade para um suposto turista, e, 4. uma atividade onde sua cidade seja representada/imaginada por imagens e sensações relacionadas aos sentidos. Por exemplo: se sua cidade fosse um cheiro, um sabor, um toque, quais seriam eles? Qual a razão destas associações?
Quero incentivar a produção escrita e oral dos alunos. Aprofundar o estudo dos espaços cotidianos vividos, percorridos em nossa cidade. A tentativa é de evitar os tradicionais e um tanto enfadonhos discursos sobre a cidade quando a docência em geografia se resume a um conjunto vasto de informações acerca da mesma e onde o aluno tem uma postura excessivamente passiva e distante, como se nada tivesse a dizer sobre a cidade que ele habita.
Tanto nos depoimentos, como na proposta das atividades didáticas, quer se resgatar a escrita e a reflexão como matérias-primas para o exercício da docência, bem como utilizar esta produção para discutirmos conceitos fundamentais de nossa ciência. E, creio que isso seja o mais importante, pensar nossas identidades, papéis e objetivos como cidadãos. Como vemos e usufruímos nossa cidade? Que cidadania, nós e nossos conterrâneos, temos? Conhecer nossa cidade pode ser um belo pretexto para conhecermos a nós mesmos. E vice-versa, conhecer a nós mesmos pode ser uma maneira de melhor conhecer e cuidar de nossa cidade.
 A busca é o que almejo: aproximar nossa disciplina e nossa docência da filosofia, do exercício ontológico de (re)pensarmos a nós nos espaços que convivemos, já que nossa cotidianeidade se dá , sobretudo, no espaço de nossa cidade.
 
Parte I – Três depoimentos docentes e um princípio: confiar na razão! E desconfiar da razão. E confiar na emoção. E desconfiar da emoção!
A busca da boa docência é uma tarefa bastante hercúlea e interessante, pois não deixa de ser a busca de uma miragem. Quanto mais nos aproximamos do fim almejado parece que ele nos escapa. Uma preocupação constante, já que a formação docente (inicial ou continuada) é o meu fazer cotidiano. Escrevi (Kaercher, 2003, p.75) comparando a docência às figuras da mitologia grega: Hércules (trabalho hercúleo, gigantesco), Atlas (sensação de carregar o mundo nas costas, um misto de punição e cansaço) e Sísifo (carregando pedras montanha acima). Feito nós, sempre recomeçando a formação dos discentes.
Uma boa forma de refletirmos sobre a docência é pensar o que nossos professores fizeram conosco, desde nossas primeiras aulas, lá no Ensino Fundamental, pois vamos aprendendo a ser professores desde que entramos numa instituição escolar. O senso comum, inclusive entre nós professores, é que aprendemos a ser professores nas faculdades de educação, algo que só ocorre, normalmente, quando nosso curso superior já está avançado e, via de regra, nossa prioridade, dado o cansaço e a ansiedade, é ‘cair fora’ da universidade. É um desperdício de material empírico desconsiderar nossa vida de aluno do Ensino Fundamental e Médio. Os modelos que depois, mesmo um tanto inconscientemente, vamos reproduzir, não raro vieram lá de nossos primeiros professores.
Sugiro pensar nossas aulas de geografia e os nossos professores, sejam lá de quais disciplinas forem, para ver o que há nesta experiência de positivo, que deva ser copiado, e o que há que se evitar. Ressalto um paradoxo: como é difícil mudar! Como alunos temos, desde muito cedo, uma capacidade muito arguta de criticar o que fizeram conosco em nome da educação, das disciplinas escolares. Uma vez docentes, no entanto, como é comum reproduzirmos práticas que condenamos no discurso. Discurso, via de regra, progressista e inovador. O que nos remete a Morin: devemos confiar na razão. E devemos desconfiar da razão. Devemos confiar na emoção. E devemos desconfiar da emoção. Enfrentar as incertezas, as ‘falhas’, os ‘erros’ como inerentes à docência, como material de reflexão. Fundamental que a escola coloque a vida pra dentro de seus muros, mesmo - ou, sobretudo - o que tememos e não controlamos. Não adianta esconder debaixo do tapete nossos medos e fracassos. Morin, audacioso e iconoclasta (2005, p. 19-20):
As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão. A educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja, em algum grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão. [...] em qualquer transmissão de informação, em qualquer comunicação existe o risco do erro. O conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo externo. Todas as percepções são, ao mesmo tempo, traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e codificados pelos sentidos. [...]. Daí os numerosos erros de concepção e de idéias que sobrevêm a despeito de nossos controles racionais.
  É importante que o professor se atente para a possibilidade de estar ‘errado’! Exercício, necessaríssimo, de humildade. Uma forma de sermos humildes na prática (e não só no discurso) é pensarmos sobre nossa prática docente cotidiana. Ver pontos onde o ensino fluiu bem. Ver pontos onde empacamos. Diminuir também o peso nas costas: não precisamos saber ‘tudo’ e ‘todo’ o que há no mundo! Estudar o mundo, o globo, volto a lembrar, não implica, carregá-los, às costas, como um peso. O conhecimento pode ser um obstáculo ao próprio conhecimento quando nos imbuímos de certezas em demasia.
  Passo agora aos depoimentos.
  O texto abaixo é fragmento de um trabalho de um ex-aluno meu, Jean Pierre Corseuil (2006), curso de Pedagogia. Os negritos são meus:
“[...] Nietzsche já dizia que “não passa de um preconceito moral julgar-se que a verdade vale mais que a aparência”, e essas aparentes mentiras, que na linguagem de Mario Quintana “são apenas verdades que esqueceram de acontecer”, não deixam de ser uma forma – um tanto primária, talvez – de se assumir perante si mesmo, ou de se tornar aquilo que se é. Afinal: o fato de tornar-se aquilo que se é admite que não se tenha a mais longínqua idéia daquilo que se é. Sob esse ponto de vista também os erros da vida têm o seu significado e o seu valor, bem como as estradas mais longas e os círculos viciosos, as cogitações, as “modéstias”, a seriedade, etc.
Tornar-se aquilo que se é, eis aí uma pretensão que, embora soe meio vaga, não pode ser excluída de qualquer processo educacional, senão o assunto passa a ser doutrinação. No entanto, penso que existem sim algumas características que julgo serem indispensáveis não só ao professor, mas a toda pessoa que queira aprender, já que ensinar e aprender são dois lados da mesma moeda (quem nunca ouviu dizer que se aprende melhor quando se tenta ensinar ao outro o que se aprende?). [...]. Tanto a educação quanto as artes têm em seus fundamentos, sejam lá quais eles sejam, a tentativa de abarcar tudo o que chamamos de “humano”, e eu descobri na pele que dar uma boa aula é tarefa que nem mesmo alguns dos grandes artistas que admiro talvez conseguissem cumprir satisfatoriamente. Um bom professor, esse é antes de tudo um artista da mobilidade: sua arte uma hora exige um palco, noutra exige a solidão da concentração, por diversas vezes exige criação onde a rotina institucional justamente faz de tudo pra segurar a mesmice. A experiência de dar aulas me fez descobrir que, dentro do contexto do papel de mero reprodutor ideológico que o professor muitas vezes pode assumir, dar uma boa aula diz respeito também a conseguir libertar-se a si mesmo das suas amarras ideológicas - ou do próprio ideal, como diria Nietzsche -, caso contrário, o ensinar pode se tornar uma atividade extrema e perigosamente burocrática. Para isso, o professor tem que ser um artista, com tudo que um artista tem de filósofo, de cientista, de médico, de mágico... e, claro, de geógrafo. O professor, essa figura tão típica dos sistemas e estruturas sociais que tão comumente se pode criticar, carrega em suas potencialidades ainda aquilo que definia um mestre ao longo da história, no sentido mais amplo que a palavra mestre consegue carregar: aquele que vivia o que ensinava; que abstraia de suas próprias experiências as explicações que não viriam de nenhum outro lugar, pra depois passá-las de alguma forma; aquele que garantia a vitalidade do que ensinava através justamente da energia que seus ensinamentos deviam, antes, garantir a ele mesmo. Uma das coisas que Nietzsche disse e que fizeram dele um dos meus mestres, "[...] como pretenderia eu ser absolutamente justo? Como posso dar, a cada um, o seu? Seja-me suficiente isto: dou, a cada um, o meu". Essa é uma das prerrogativas que carrego comigo nas minhas relações como professor, e que não deixam nunca de ser, num sentido mais amplo, das minhas relações com o outro; a conhecimento de si mesmo, não no sentido de fixar-se a uma identidade, mas no sentido do tornar-se aquilo que se é de Nietzsche, justamente é o que define a grandeza de um mestre, porque essa é a base pra sua relação com os outros, é o dar de si porque há bastante de si, não por nenhuma espécie de comiseração ou de pretensa ajuda. Ensinar nada mais é do que isso: a relação com o outro atingindo a magnificência, uma relação que não apaga o eu, mas que antes lhe dá cores. E, se mesmo assim, o ser humano é ainda um animal em muito inabitado, um mestre sabe que seu caminho é como que um desbravamento; se a geografia diz respeito à ocupação de lugares, professor é um geógrafo de idéias não só no sentido de que é um mapeador, mas também um desbravador enquanto eterno aluno, um navegante rumo ao desconhecido”.
Para pensar junto com o belo texto de Jean:
a) Poetas, romancistas, enfim, NÃO PROFESSORES no sentido formal/profissional são excelentes fontes para inspirar nossa prática. Não, não para tornar nossa aula ‘bonita’, ‘poética’, ‘diferente’ – nada contra isso, pelo contrário, criem e se reinventem à vontade – mas, sobretudo porque iluminam cantos pouco vasculhados pela sisudez e, não raro, monotonia da academia e da intelectualidade. Fernando Pessoa, Mário Quintana, escolha o seu nome, inspiram. São filósofos, são sábios sem a pretensão de sê-lo... talvez aí esteja a grande sacada da literatura. Você deve ter os seus inspiradores. Senão os têm, mau sinal... está na hora de achá-los. Até pode não achá-los, mas buscá-los é fundamental. Morin (2003, p. 91) mostra que podemos ensinar e aprender muitos temas escolares com a literatura:
As ciências realizavam o que acreditavam ser sua missão: dissolver a complexidade das aparências para revelar a simplicidade oculta da realidade; de fato, a literatura assumia por missão revelar a complexidade humana que se esconde sob as aparências de simplicidade. Revelava os indivíduos, sujeitos de desejos, paixões, sonhos, delírios; envolvidos em relacionamentos de amor, de rivalidade, de ódio; inseridos em seu meio social ou profissional, submetidos a acontecimentos e acasos, vivendo seu destino incerto. Todas as obras-primas da literatura foram obras-primas de complexidade.
b) Tornar-se aquilo que se é. Parece – e é – frase pomposa, filosófica. Que belo desafio. Desafio, aliás, que é percebido pelos alunos. Quanto mais autêntica e sincera a docência, mais os alunos tendem a ouvir o professor com atenção e respeito. Para tal é preciso, o que não é fácil, gostar do ofício. E, gostar dos alunos. Ouvi-los com atenção para que se dê o pacto pedagógico. Viver o que se ensina! Ufa! Outra frase bonita de se escrever, mas que expõe nossas vísceras para praticá-la.
c) Um bom professor, esse é antes de tudo um artista da mobilidade. A solidão da concentração, por diversas vezes exige criação onde a rotina institucional justamente faz de tudo pra segurar a mesmice. A profissão tende a rotina Tendemos à acomodação. E, no discurso idealizado temos a necessidade de sermos criativos. Na cotidianeidade, temos a mesmice e a burocracia a nos empurrar para o tédio.
d) Ensinar nada mais é do que isso: a relação com o outro atingindo a magnificência, uma relação que não apaga o eu, mas que antes lhe dá cores. Grande, Jean! Que cores conseguimos ver em nossos alunos? Que sabores e que saberes eles têm? Como evitar a visão tão comum em que desacreditamos em nossos alunos: ‘eles não sabem ler’, ‘eles não querem aprender’, ‘eles não se comportam’? “Os professores precisam educar-se sobre o mundo e a cultura dos adolescentes” (MORIN, 2003, p. 79). Sem o interesse pelo universo simbólico dos alunos fica difícil haver a aproximação entre os pares envolvidos no processo.
Romper a visão de que os alunos são todos iguais, ‘árvores numa floresta, tudo verde’. Quão falsa é esta impressão de homogeneidade quando nos aproximamos da floresta. Há tantas espécies distintas! Isso posto, não implica num falso dilema: “como conhecer meus alunos? Tenho tantos”. Não é possível conhecê-los a fundo, claro. Proponho algo simples: lançar perguntas reais - cujas respostas não sabemos de fato. E não perguntas fictícias tipo “qual a capital da França?”, “qual a raiz quadrada de nove?”, “qual a data da Proclamação da República?”, etc. E, passo importante, ouvir com interesse as respostas deles. Ouvir não para passar o tempo, mas para fazer destas falas novos pontos de diálogo e de ligação com os conteúdos programáticos. Exemplo: qual a música que você gosta? Ora, a partir desta resposta podemos pesquisar a origem dos diferentes estilos musicais, cada qual com suas particularidades históricas e geográficas.
e) Um mestre, não raro não sabe os caminhos. Nada grave. Viver não é preciso, já disse Fernando Pessoa. Navegar é que requer precisão. Rosa, em Grande Sertão: Veredas (191-2) vai na mesma direção, ao falar da busca mítica das certezas:
Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados ... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, esse mundo é muito misturado [...].
A gente quer tudo ‘bem demarcado’, mas, doce ilusão, é tudo muito misturado!
A metáfora do professor como um desbravador: busca os caminhos, com autêntica curiosidade e gosto. Convida os alunos: venham comigo! Será bom! Se a geografia diz respeito à reflexão sobre a ocupação dos lugares, o professor é um geógrafo de idéias não só no sentido de que é um mapeador, mas também um desbravador enquanto eterno aluno, um navegante rumo ao desconhecido. “Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu” (‘Mar Português, Fernando Pessoa).

Como ensinar o PDT: paixão, desejo, tesão?
  O segundo depoimento é de uma ex-mestranda do curso de Geografia/UFRGS. Dei-lhe tarefa simples. Escrever uma carta a um professor marcante. Para o próprio – ai a ficção - professor marcante. Suprimi pequenos trechos para não haver identificação e inclui parênteses para clarear, já que o linguajar era informalíssimo. Só tinha uma condição: ser sincera. Eis a carta:
 
“Oi,Super-Hiper!
Ah, sentiu, é? Então lá vai. Já falei várias vezes e muitas pessoas concordam comigo, ao menos em parte, que o  professor Pavão (nome fictício) é uma mistura de guri com homem, aluno e mestre, letrado e historiador. Demonstra muita cultura e empatia com os alunos, gosta de deixar os alunos à vontade, mas não demais, que estudar é coisa séria, requer atenção, disciplina, organização, concentração e leitura. Uma bagunça organizada é que é a mais legal! Porque a gurizada pensa que está brincando e está é aprendendo, aquela "construção de conhecimento" que todo mundo fala e escreve sobre o assunto, mas na prática não é brincadeira (de operacionalizar), não! Mas o professor se diverte enquanto aprende e ensina junto com os seus pupilos... . O Pavão é um professor carismático, o que por si só já é muito, pois a figura dele já atrai a atenção dos alunos, principalmente das alunas - porque ele é bem gatinho também - e é de estímulo que todos precisamos, alunos e professores!! Os tiques fazem parte do carisma: aquele olhar pra cima, meio de lado (esquerdo ou direito?) como quem lembrar de alguma coisa e tenta acessar a zona temporal da memória... a cabeça balança suavemente, o tom da voz acompanha no ritmo certo... sempre tendo o cuidado de valorizar o trabalho de cada um, já que os olhares dos professores - imagino eu - deve ser daqueles olhares de quem pensa – “O que é que esse professor pensa que eu faço a aula toda? Eu dou aula 40h, 60h e ele vem me falar em ‘fazer a diferença’? Como? Com essas turmas? Com esse salário? etc. etc. etc...” Mas, o professor Pavão não desiste, quase joga tudo pra cima, mas agüenta firme... reza 10 Pai Nossos, 10 Aves Marias e toca ficha... torce pra (nome dela) dizer "a sua palavra", mas ela não diz... só escreve, a boba! Pra quem entende a vontade dele de romper com a mesmice e pirar um pouco nas aulas, valorizando as coisas simples e usando mais a criatividade e menos o relógio, o Pavão é uma curtição! Fala a mesma língua dos professores-alunos e alguns ficam em dúvida: será que ele ‘tá’ falando sério ou ‘tá’ brincando? Será que a (nome da disciplina do professor Pavão) é tudo isso? Dá até vontade de alguns experimentarem as suas sugestões!!! Isso é que é legal no Pavão e ele nem sabe... deixa uma pulga atrás da orelha de cada um, uma dúvida, um desafio, uma provocação!!! E a literatura, então! O Prof. Pavão junta a (nome da disciplina do professor Pavão) e a música, a literatura, mostra que os casamentos entre as diferentes áreas de conhecimento, não apenas são possíveis, quanto necessários e interessantes... dá vontade de experimentar mesmo... enfim, além do Pavão ser de carne e osso, como todo mundo, é inteligente o suficiente pra usar o palavreado intelectual moderadamente, de forma que todos se sintam à vontade pra falar e dar opinião... Eu poderia ficar escrevendo muito mais, mas o dever me chama... vou levar meu filho pra uma vaga de emprego!!! Tomara que dê certo!
Beijos amorosos da (nome da aluna) maluquita da Silva!!!”
Propus continuarmos a brincadeira. Pedi que fizessem uma resposta supondo que eles próprios eram os destinatários originais da missiva da ‘maluquita da silva’. No caso, o respondente passou a ser/sentir-se o professor Pavão. Olha o que o vivente respondeu.

“Oi (aluna X)
A luz das tuas palavras varre pra longe as nuvens cinzas, a chuva e o frio gelado ventoso lá de fora!
É maravilhoso te ler.
Todo pavão adora ouvir que sua cauda é bonita.
Eu, pavão que sou, adorei.
Adorei porque sei que é sincero. Com que transparência me pões a nu, me vês claro”. etc.
Convidei-me a participar... busquei um poema, achei, no meio da procura, outro:

Passagem das Horas (Fernando Pessoa por Alberto Caieiro)
Trago dentro do meu coração
Como num cofre que não se pode fechar de cheio
Todos os lugares onde estive
Todos os lugares a que cheguei
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando
E tudo isso,que é tanto,é pouco para o que quero.
 
Sentir tudo de todas as maneiras
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo...
O que nos faz pensar a docência essas ficcionais missivas?
a) A docência é atividade racional. Planejada antecipadamente. Mas por que não, no intuito de estimular a produção escrita e a criatividade dos alunos, misturar ficção e fantasia? O pressuposto é: não raro falamos muito sinceramente de nós mesmos quando podemos criar mais livremente. Exemplo: se pedires para um aluno falar/escrever algo particular de sua vida concreta, engasgará, fará um relato, amiúde, burocrático. Peça-lhe, indiretamente, para criar alguma história ou personagem fictício e, não raro, ele se descortinará travestido deste personagem. Resumindo, não há docência eficaz manipulando apenas conhecimentos técnicos e informações da área. A docência requer todos estes conhecimentos e autores técnicos, mas para que ela marque o aluno, faça diferença, vai exigir que outros discursos e atores entrem em cena. No dizer da ‘maluquita’: deixar os alunos à vontade, mas não demais, que estudar é coisa séria, requer atenção, disciplina, organização, concentração e leitura. Uma bagunça organizada! O bom mestre é aquele que concilia seriedade com descontração. Estudar é trabalho, é trabalhoso, não nos iludamos! ‘Estudar é prazeroso’ é uma afirmação idealizada, não raro inverossímil. Estudar pode ser prazeroso, mas não é comum sê-lo. O bom mestre que quiser ser ‘amigo’ dos alunos corre o risco de não ser amigo e, menos ainda, professor. A amizade só poderá ter legitimidade se ela advir de um trabalho sério, não raro conflituoso.
b) E é de estímulo que todos precisamos, alunos e professores. Todos nos pomos de acordo com essa máxima, mas o problema é: o que é estímulo? Que tipo de estímulo precisamos ter e ‘ensinar’? É possível ensinar a gostar de algo? Sim e não! Uma fonte positiva de estímulo aos alunos é a elaboração de perguntas, o debate organizado em torno de idéias controversas, que aliem conteúdos disciplinares com questões éticas e estéticas mais amplas. Um estímulo pode ser o professor falar de suas coisas e vivências para que os alunos, tocados pela sinceridade do professor, também percam, aos poucos, o receio de exporem suas idéias. Queremos, no discurso que os alunos sejam leitores! Ok, mas o que nós lemos? E o que estamos lendo, mostramos aos alunos? O que pedimos para os alunos lerem, a não ser trechos isolados – e não raro áridos – de livros didáticos? Mostramos o contexto de determinado autor e obra para que o nosso aluno que, via de regra, desconhece o referido contexto e autor, possa se inteirar com mais propriedade do assunto em questão? Ou ainda estamos falando no “golpe de 1964” como se nossos alunos tivessem vivido naqueles tempos e convivido com aqueles valores e polêmicas? Contextualizar é fundamental. Se em 1988, votar para presidente da república era ‘show’, hoje este ‘atrativo’ virou banalidade: a cada dois anos estamos diante das urnas.  O cotidiano nas escolas muitas vezes é cinza, é nublado. Como estimular nossos alunos se, muitas vezes, estamos desestimulados?
c) Dá até vontade de alguns experimentarem as suas sugestões!!! Isso é que é legal no Pavão e ele nem sabe... deixa uma pulga atrás da orelha de cada um, uma dúvida, um desafio, uma provocação!!
Seria bárbaro se pudéssemos conciliar essa curiosidade de experimentar o ‘diferente’ sem tanto medo de que ‘não dará certo’. É ótimo quando podemos desafiar os alunos ao novo, ao incerto, mas, conjuntamente, propormos pistas, sugestões, ‘redes’ de acolhida. Para que o aluno sinta-se acompanhado, cuidado ao longo do trajeto rumo ao saber.
d) Fica claro: está professora é apaixonada pelo que faz, pela docência. Isso faz dela uma pessoa inquieta – às vezes angustiada, o que é legal - , criativa e propositiva. Mantêm a capacidade de criticar o que atrapalha a ação educativa, mas não fica inerte. Joga-se ao mar na busca de alternativas. O que, mais uma vez, me traz a pergunta: como ensinar (aos futuros docentes ou aos docentes já em ação) paixão, desejo, tesão?
Qual é a importância da geografia na vida dos meus alunos? Mas qual geografia?

  O terceiro depoimento é um e-mail recebido (maio/2007) de uma ex-aluna da Licenciatura da Geografia (UFRGS). Formou-se no final de 2006. Fiz pequenas supressões e correções sem mexer no contexto maior. Os negritos são meus.
  “Olá professor Kaercher, 
  Como estás? Tudo bem?
  Estou lhe enviando este e-mail para dar-lhe notícias de como anda uma das professoras que foste formador. Além disso, soube pelo colega F., que o senhor gostaria que eu entrasse em contato contigo.
  Estou trabalhando muito: 40 horas em escolas e estou fazendo o mestrado. Trabalho com crianças, na maioria. Tenho 12 turmas de 5ª série. Como trabalho em Novo Hamburgo e São Leopoldo (cidades da região metropolitana de Porto Alegre) gasto 4 horas diárias em trem e ônibus.
  Sabe professor, tenho passado por situações  desestimulantes para a nossa profissão. Tenho alunos violentos, drogados, já fui muitas vezes ameaçada. Dou aula em uma escola "barra pesada" onde há três seguranças para os professores. Onde alunos morrem, às vezes, em assaltos, bala perdida, brigas. É um mundo que não achava que existia. Sempre fui muito pobre, já passei fome, mas nunca vi tanta violência e pessoas que vivem em condições de vida tão ruins. Sem expectativas! Não há importância alguma aos estudos. A sobrevivência é mais importante. Ganhar a bolsa família é o objetivo de ir à escola.
  Agora aprendi que os conhecimentos que aprendemos (acreditamos) serem importantes e que nos preparamos para passar adiante, não são nada importantes numa realidade onde a expectativa de vida é baixíssima, onde os alunos não visam uma universidade, onde meninas se prostituem já com 13 anos, onde o auge no pensamento de muitos é ser chefe do tráfico no beco.
  Aprendi agora, só agora, que minha aula toda, não está em livros, mas na vida dos alunos. A vida deles é (deveria ser) o conteúdo, é dela que tiro minhas aulas. É difícil por que antes preciso entender como eles pensam e vivem, uma cultura totalmente diferente.
  São crianças nada inocentes, que precisam, antes de conteúdos, precisam entender suas vidas, ter esperança para quererem uma vida melhor.
  Costumo refletir muito sobre meu trabalho, e vi que, enquanto eu tentava mostrar para os alunos que a Terra girava, percebi que precisava sair do meu mundinho e pensar no que eu estava fazendo. Qual era a importância deste meu trabalho, qual é a importância desta tal aula de geografia  - me lembrei muito do meu professor Nestor -, o que isto iria mudar na vida deste alunos?
  Pois então, estava ensinando movimentos da Terra aos alunos, quando percebi que um dos alunos saiu porta afora da sala de aula. Este aluno que tanto incomodou e me afrontou, que não queria fazer nada, nem copiar, nem estudar, nem me ouvir, nem falar comigo, um "capeta" que só arrumava confusão e brigas, me insultava. Ele saiu da sala chorando. Percebi que havia muitas vidas ali na sala de aula, e que “movimentos da Terra?” era nada importante, se a vida de muitos era um tormento. Este aluno foi apelidado de catinga (cheirava mal), foi surrado pelos colegas no pátio. Conversei com ele, que se recusava a entrar na sala de aula, se ele queria ir pra casa, ele ficou aos prantos chorando, dizia que não, ele não queria nada, queria ficar sozinho num cantinho. Percebi que aquele aluno que tanto me perturbava, revoltado, estava pedindo, na verdade socorro! Descobri, por vizinhos e pela direção da escola, que esta criança de 12 anos viu seu pai bêbado matar com 7 facadas sua mãe, e agora está fugitivo da polícia. Esta criança vive um dia com umas pessoas, outro dia com outras pessoas, passando fome, sem banho, às vezes, sem roupas, em casa de pessoas muito pobres, sem carinho. Pensei realmente qual é a importância da geografia na vida destes meus alunos, mas de qual geografia? Então, aí vi que a geografia que preciso trabalhar em sala de aula é a geografia da vida deles. Era isto.
  Professor, desculpa, me empolguei escrevendo, mas são desabafos reflexivos de uma saudosa aluna sua, hoje professora.
  Um abraço (K K da R)”.

Alguns pontos para refletirmos:
a) Paulada, né? Soco no estômago. Duro, cru, forte, mas muito belo e sensível relato. “Já fui muitas vezes ameaçada”... Uau! O cotidiano escolar é muito áspero para muitos docentes: “um mundo que eu não pensava que existia”! Surge de pronto uma questão para mim, formador de docentes: como aproximar a formação inicial, as disciplinas pedagógicas, os estágios docentes de uma realidade tão distante do meio universitário cotidiano? Podemos até alertá-los, mas relembro uma canção de Belchior: “não se preocupe com os horrores que eu lhe digo, porque, meu amigo, ao vivo, a vida, é muito pior!”. Preparar um bom docente vai requerer, insisto, além de conhecimento da disciplina escolar específica (geografia, história, matemática, etc.) um olhar para culturas tão distintas da nossa cotidianidade. Isso requer uma ruptura epistemológica que terá implicações pedagógicas: descentrar-se dos meus planos prévios de aula e abrir-me para o outro, o ‘estranho’, no caso, o aluno. Note que isso não é fácil pois este outro, não raro, é hostil a mim. A professora em questão, primeiro foi hostilizada, muito provavelmente gratuitamente, pelo aluno. Posteriormente, num belo exemplo de desapego ao seu poder, foi em direção ao aluno para ver possíveis razões para aquele comportamento. No geral – e é compreensível – não temos esta paciência: levar porrada de aluno e tentar entender as razões que, comumente, são extra sala de aula. Cobrar tal comportamento quase monástico dos professores é possível, mas é um fardo a mais.
b) “Que minha aula toda, não está em livros, mas na vida dos alunos. A vida deles é (deveria ser) o conteúdo, é dela que tiro minhas aulas. É difícil porque antes preciso entender como eles pensam e vivem, uma cultura totalmente diferente”. Que sensibilidade! De novo o choque, a necessidade de que eu, professor, me descentre das minhas idéias e práticas para ver o outro não como uma ameaça, não com um olhar condenatório, moralista e correcional. Difícil, afinal, temos nossas idéias porque acreditamos que elas são corretas e tem servido para levarmos nossa vida adiante. E não se trata aqui de uma falsa polêmica do tipo ‘mundo dos livros didáticos’ (“falsos”) versus ‘mundo cotidiano dos alunos’ (‘mundo real’). Os conhecimentos aqui não se excluem, se conjugam, se compõem. Temos que usar os livros didáticos, mais de um deles até, mas tendo sempre a sensibilidade de adaptá-los, fazer com que dialogue o mundo dos livros com o mundo do cotidiano. Sem desprezar nenhum. Compor. Muitas vezes, seguir o livro didático na seqüência, na integralidade, não é viável, nem recomendável. Que o livro didático pode ser a chave de entrada (ou saída) para pensar a realidade dos alunos. Evitar também o erro de ficarmos só no mundo dos alunos, o que até reforçaria a sua baixa auto-estima pois sendo este um mundo pobre (não só no aspecto material) e violento há que se mostrar outras realidades, outros mundos na utópica idéia de que outro mundo é possível. Tentar conciliar a crítica ao mundo injusto por eles vivido com a possibilidade de mostrar outras formas de viver. Entender como eles vivem não pra chancelar tudo já que sabemos que valores, muitas vezes machistas e sexistas, entre outros preconceitos, abundam neste meio. Entender para questionar sem tampouco ter a ilusão de que uma discussão destes temas e valores vai mudar a cabeça deles.
Nós professores podemos pouco, com certeza. Mas este pouco não é nada desprezível. As sementes plantadas em discussões de sala de aula podem gerar frutos bem depois da aula dada. Educação é processo lento, permanente e não raro temos pouca paciência. Queremos mudanças pra ontem.
c) Percebi que havia muitas vidas ali na sala de aula, diz a professora K. É interessante confrontar o processo naturalmente homogenizante da escola, da sala de aula (os alunos, quando muitos, vistos de longe, ‘pelo alto’, parecem tudo igual, uma floresta compacta, homogênea. “toda verde”). À medida que nos aproximamos deles, ouvimos suas falas, ouvimos seus silêncios, olhamos para eles, percebendo inclusive o não-olhar deles, podemos ver que a floresta é constituída de muitas plantas distintas em tamanho, cor e tantos outros quesitos.
Creio ser plenamente possível conciliar temas tradicionais dos currículos de geografia com as questões cotidianas, existenciais da vida dos alunos. Não há aqui uma dicotomia irreconciliável. Há uma possibilidade de fecunda troca. Novamente esse diálogo entre professor e aluno, geografia escolar e cotidianidade, vai requerer uma postura epistemológica aberta do professor.
d) ao mesmo tempo, diante deste círculo de horrores citados, uma velha questão ressurge: como a educação, a sala de aula carrega pra dentro do teu cotidiano profissional problemas gestados fora do espaço escolar. Problemas sociais, misérias de toda ordem, que não só econômicas, entram, sem nenhum convite, dentro de nossa sala. Vemos que os problemas (um pai drogado, uma família ausente, por exemplo) afetam muito o rendimento escolar, tanto no aspecto cognitivo como no aspecto disciplinar dos alunos, mas nós professores temos limitada interferência nestes aspectos.
Com isso não quero eximir-me de tentar propor alternativas de ação docente eficaz. O contrário, diante de tais desafios e problemas é mister que busquemos alternativas, senão nosso cotidiano em sala de aula fica muito pesado, impotente.
Neste sentido, na parte II do texto, proponho algumas ações didáticas que podem ser feitas como estímulo à produção pessoal dos alunos.

Parte II – A geografia do custo zero (gcz) nos dai hoje: a cidade como ponte e parte de nós
A seguir, sugiro algumas práticas de sala de aula, destinadas a alunos que podem ser de quaisquer séries, mas que tem um pressuposto subjacente: a geografia do custo zero (gcz). Geografia do custo zero (gcz) porque não implicam em gastos extras nem tampouco recursos tecnológicos (nada contra eles, mas no geral não estão muito disponíveis nas escolas públicas do meu estado, da minha cidade). Uma simples folha xerocada e já temos, muitas vezes, matéria-prima para belas discussões e produções. O diferencial não é o computador, é dar o ‘clique’ na turma.
Atividade 1: Se minha cidade fosse .... seria um(a) ....
Peço para fazerem um exercício de imaginação com um objeto muito ‘real’, presente no cotidiano deles. Conciliar a cidade deles, no caso Porto Alegre, com diferentes lembranças, intuições. O exercício é o que segue:
Preencha as lacunas abaixo
Se Porto Alegre fosse .... seria um(a)...
a) Uma cor: ______________ Motivo: ________________________________
b) Um cheiro: _____________ Motivo: ________________________________
c) Um sabor: ______________ Motivo: ________________________________
d) Um som: _______________ Motivo: ________________________________
e) Um toque: ______________ Motivo: ________________________________
f) Uma pessoa: ___________  Motivo: ________________________________
g) Uma foto: ______________  Motivo: ________________________________
h) Um sonho:­­­­­­­­­­­­­ ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­_____________ Motivo: ________________________________
i) Um(a) _________________ Motivo: ________________________________
Dicas:  podemos fazer o mesmo com algum estado, país, continente. Ou sobre algum assunto novo
  antes da discussão em grande grupo (toda a turma) divida-os em grupos de 3-4 para apresentarem suas idéias e impressões neste pequeno grupo. Enquanto isso, circule entre eles. Ouça-os atentamente e anote idéias pra socializar no grande grupo. São assínteses parciais. Muito úteis.
Durante a discussão, peça para eles anotarem no caderno algumas idéias, inclusive as deles.
Muito importante: escreva no quadro. Anote frases legais e também as absurdas. A escola está perdendo o hábito de escrever. Isso é tarefa nossa: estimular a leitura e a escrita. É um exercício a praticar.
   numa outra aula peça para eles trazerem alguma foto ou objeto que faça eles lembrarem a cidade (ou o estado, o país) do qual estão falando.
   repita essa tarefa quando você for começar um novo assunto. Assim você faz uma análise dos conhecimentos prévios deles. Isso vai lhe dar uma série de insights para as futuras aulas (equívocos, preconceitos, temas a discutir, etc).
Outra opção:
Defina Porto Alegre em três palavras: ___________, ___________ e __________.
  Ou ainda: descreve uma cena que represente Porto Alegre para ti!
Alguns comentários
a) É muito interessante e produtivo deixar sempre uma linha ‘em aberto’. Quando instigado a criar, diante de um ‘espaço em branco’ (no caso a letra ‘i’) muitos alunos tem ‘sacadas’ muito criativas, que abrem janelas para discussões que o professor nem tinha se dado conta.
Deixem espaços para o aluno criar. Eles são muito criativos.
b) Qual o objetivo? Ouvir os alunos, estimular o diálogo, a troca de idéias. Tensionar o quão ideológico (‘palpitismo’) é o ensino de geografia. Cada um de nós pode ver o mesmo objeto de formas distintas, até antagônicas, afinal, não vemos apenas com os olhos, mas com o cérebro, tão cheio de memórias. E, as memórias são interpretadas teoricamente, de forma pessoal, por cada um, de forma única. Se fosse tudo igual, os seres humanos estariam condenados a repetir o que seus antepassados fizeram.
Imagine fazer este exercício sobre a África? Que conhecimentos temos sobre ela? E, no entanto, ninguém de nós fica muito preocupado em lecionar África (e Ásia, etc.) nas nossas aulas.
c) Na hora da discussão não precisamos analisar tópico por tópico. Ficaria muito longo. Podemos começar por qualquer item que lhes agrade. Sempre o diferencial vai ser você, professor. A sua sensibilidade em iluminar cantos sombreados, trazer à tona discussões levantadas, fazer pausas para aprofundar, re-interrogar algo dito superficialmente, etc.
d) Fica muito evidente que um mesmo item traz percepções muito distintas. Um cheiro de Porto Alegre para alguns pode ser um bom perfume, para outros, o da poluição. É nessa contradição que podemos mostrar que o conhecimento não é algo ‘objetivo’, ‘impessoal’, mas uma construção sempre carregada de sentimentos e subjetividades.
e) Repare que peço, na continuidade do exercício, que descrevam uma cena. E não, o que é mais comum, uma paisagem. Explico: na cena é mais fácil pro aluno inserir personagens e movimento, o que ajuda a mostrar uma geografia mais condizente com a proposta de ver processos e sujeitos em permanente reconstrução/ação.

Atividade 2: Mapa do percurso e dos sentidos casa-faculdade
A atividade é a que segue.
a) Faça numa folha de ofício o mapa/desenho/croqui do trajeto que você faz da sua casa até a Faculdade de Educação (FACED). Primeiro, faça livremente, sem regras. É o teu ‘rascunho’. Depois, faça outro, ‘seguindo’ as dicas abaixo.
Dicas:
   selecione os pontos de referência mais gerais. Assim você terá uma visão mais do conjunto. Detalhes, nesta hora, atrapalham. Beleza aqui é menos importante que clareza.
   crie legenda, use símbolos. Evite escrever muito no mapa. Escreva tudo no mesmo sentido (evitar que o leitor vire a folha de lado para ler)
  coloque um título (o leitor precisa saber o que ele está lendo)
  tente respeitar proporções (escala). (a distância FACED – Parque da Redenção não é a mesma FACED – Gravataí[2])
   as ruas percorridas não precisam imitar o real, isto é, fazer curvas. Podes fazer em linha reta
- Compare as duas produções. O que tem de igual? Diferente? Escreva no caderno uma síntese (4-5 linhas). Que conclusão você tirou?
Uma variante desta tarefa pode ser: no trajeto casa-faced escolha um cheiro, uma visão, uma textura, um gosto/paladar e um som e associe-os a pontos de referência no trajeto. Exemplo: o cheiro do pastel com o bar em que ele é vendido.
2. No verso do mapa você vai fazer uma pequena pesquisa sobre “quem são os nomes das ruas de pessoas por onde você passa?”. Ex. Avenida Protásio Alves! Quem foi, que época viveu, onde viveu?
Algumas discussões podemos propor:
a) a importância do rascunho antes da produção ‘final’, para entregar. O rascunho vai remeter a necessidade de uma visão do todo, o que exige uma abstração do mapeador. A tendência da gente é fazer, já na primeira versão, todos os detalhes. Constatamos, logo que o espaço da folha ‘acaba’ e ainda estamos longe do ponto de chegada. É preciso, então, reescrever, refazer, com menos detalhismo e mais generalização.
b) construir a idéia de que o mapa é um texto a ser lido, portanto, deve ser inteligível. Brinco: você não pode ficar ao lado do mapa explicando-o ao leitor. Ele deve ser auto-explicativo. Então, os símbolos que usas devem ser claros. E, como quase tudo na vida, vamos fazendo textos/mapas mais claros quanto mais praticamos. Em Rego (2007, p. 29) faço uma proposta semelhante: praticar o desenho das paisagens visíveis. Na realidade paramos de desenhar nas primeiras séries do ensino fundamental. E o desenho faz falta para a geografia!
c) O mapa é uma simplificação da realidade. Eis aí sua virtude. A tendência é buscarmos imitar a realidade inserindo o maior número de detalhes ao mapa o que, paradoxalmente, torna-o ilegível, complexo demais. O escritor argentino Jorge Luis Borges tem um conto (Dos rigores da ciência), em que fala de um mapa perfeito, na escala um para um, ou seja, tão detalhado que se tornou imanuseável. Se o mapa copiar a realidade fica complexo demais. Vamos ao conto (tradução é minha):
[...]  Naquele império, a Arte da Cartografia chegou a tal Perfeição que o mapa de uma só Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmensurados não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos produziram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos aficcionados ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que este dilatado Mapa era Inútil e sem piedade o abandonaram as Inclemências do Sol e dos Invernos (BORGES, Obras Completas II, p. 265).
Um exemplo de mapa quase universal por sua clareza e simplicidade: o dos metrôs. São quase padronizados, copiando, se não me engano, o metrô londrino. É uma linha reta de poucas informações; as estações.
d) Cobro dos alunos a necessidade de escreverem uma conclusão na elaboração do trabalho. É hora de pensar o percurso cognitivo que foi percorrido na elaboração. Que diferenças há entre o primeiro esboço e o trabalho entregue ao professor? Escrever sobre o que se faz é uma forma de melhor refletir sobre o que se faz. E é fundamental na docência: fazer as coisas com uma intencionalidade, ainda que, muitas vezes, os resultados difiram muito do que planejamos.
e) é bem interessante certo espanto dos alunos ao percebermos que percorremos diariamente, por anos a fio, certas ruas e avenidas, e, simplesmente não sabemos quem são os homenageados. Mais interessante ainda é que vários alunos nunca haviam pensado sobre isso. Não se trata de criticar nosso desconhecimento sobre tantos nomes, mas o fato de não termos pensado nisso. Mostra uma certa naturalização de algo que é uma construção histórica. Os nomes dos lugares dizem muito da forma como contamos a história dos lugares para as novas gerações. Por que há tantos nomes de generais, políticos, homens brancos e ricos no geral, denominando as ruas? Por que os ‘de baixo’ (mulheres, negros, os de profissão humilde) não são nomes de ruas?
O que este silêncio diz? Acho que surgem boas descobertas a partir da toponímia. A geografia pode se valer muito dos nomes dos lugares para enriquecer sua reflexão.

Atividade três: Cartão-postal e minha foto particular da cidade
Peço-lhes um trabalho individual:
a) Traga uma foto/imagem que represente Porto Alegre ‘turística’, ‘cartão-postal’. Justifique porque você escolheu esta imagem.
b) Tire você uma foto bem pessoal que seria a sua imagem particular de Porto Alegre. Justifique.
  No item ‘a’ peço uma foto ‘pronta’, de terceiros, tirada por outrem. Destacam-se os pontos turísticos mais clássicos. O que pode nos remeter a idéia: o que Porto Alegre tem a oferecer ao turista? O que ela tem de ‘bonito’? Que idéia temos do que seja bonito?
  Surgem relatos interessantes. É comum os habitantes da cidade não irem aos lugares ‘clássicos’, mesmo quando gratuitos ou muito baratos. Parece que não usufruimos da cidade. Há um comodismo em sair da frente da televisão. É mais fácil se queixar: ‘não tem opções baratas de lazer’. No caso de Porto Alegre isso é uma inverdade.
  Justifico o item ‘b’. Antes era mais oneroso e burocrático tirar uma foto, hoje, o contrário, as máquinas digitais e os celulares estão acessíveis às pessoas em geral, mesmo as de baixa renda. Cabe, então, estimular para que o aluno não só diga a sua palavra como mostre a face, a cara, de sua cidade sob o seu ponto de vista bem pessoal.
  Esclareço que não precisa ser imagem ‘bonita’, mas significativa. Aparecem belos exemplos. Detalhes, para maioria insignificantes (uma praça, uma vista, uma rua) ganham destaque na voz dos autores. As trocas são ricas. Muitos não conhecem os lugares apontados. Outros, conhecem e dão suas impressões.
  É hora do professor esclarecer conceitos, trazer temas da geografia para a sala de aula, enfim, geografizar as discussões para que elas não fiquem apenas no lado estético ou de recreação.
  Esta atividade passa por questões bem pessoais: como vivo e leio  minha cidade? Que lembranças ela me traz? Quem são meus parceiros nesta vivência?

Atividade quatro: Sendo guia turístico de minha cidade
A ideia é trabalhar saídas de campo no nosso entorno (não me importo se dizem ‘passeio’) como recurso didático mantendo-nos fiéis a filosofia da gcz. O trabalho de Braun é mais detalhado no sentido de propor a saída de campo como recurso pedagógico visando uma aprendizagem significativa:
Em síntese, o professor, ao programar atividades de cooperação entre os alunos, atende aos objetivos de socialização, de confronto com diferentes visões sobre o objeto de estudo, de desenvolvimento de um pensamento crítico e de avanço no processo de reflexão. Essas interações exercem um papel preponderante no desenvolvimento cognitivo e social do aluno. Para que haja interações verdadeiras, intencionais e metas atingidas, não basta só colocar os alunos lado a lado, é preciso propor desafios e situações problematizadoras para que, através da troca, possam avançar intelectualmente (BRAUN, 2005, p. 28).
A tarefa, que pode ser feita em dupla, é a que segue:
“Crie um roteiro de três pontos/locais em que você apresentaria Porto Alegre, numa tarde, para um turista. Justifique a escolha para cada ponto (não precisa a foto)”.
Proponho uma tarde – ou um turno - para que se obriguem a planejar a saída de forma realista. Não tem como visitar muitos lugares e nem que eles sejam distantes. É preciso pensar antes: que locais? Como chego até eles? O que farei lá? O que direi ao visitante?
E, claro, a velha questão: isso é geografia? Por quê?
Vou lhes dando sugestões:
   Pesquisem sites de fotos antigas (há vários) da cidade. Eles ajudam muito para o aluno entender o espaço como algo vivo e dinâmico. Se cada aluno trouxer uma foto antiga, quanto material já podemos socializar!? Os alunos podem ser instados a fazerem pequenas entrevistas com os usuários destes espaços visitados. Nossa tarefa de professor, seja lá qual for o nível, é ajudá-los a formular questões. Mostrar-lhes aspectos que eles podem ainda não ter percebido como importantes. Educar o olhar, a sensibilidade é nossa tarefa, seja qual for a série e idade dos discentes.
   Insisto: você precisa ter claros os objetivos das aulas de geografia. Assim um passeio, uma curiosidade podem ser bastante reflexivos. Tem que ter reflexão, pergunta, espaço para o espanto.
Valho-me novamente de Braun (p. 93):
Assim, questionar, provocar dúvidas, confrontar, contradizer, problematizar, elaborar e reelaborar informações e conceitos são os passos de um caminho, é o processo que leva o educando a construir o seu próprio conhecimento. Sob essa ótica, investigamos aspropostas formuladas por escrito e as manifestações orais sobre o trabalho de campo que revelam as suas intenções no processo de ensino-aprendizagem. (destaque meu)
Nas discussões em sala surgem vários pontos:
a) a imponência dos prédios antigos da UFRGS. E o custo elevado – materiais e mão-de-obra especiais - de sua manutenção/restauração ‘facilita’ a demolição do antigo. Há o risco do ‘apagamento’ da memória da cidade. Como preservar? Onde preservar? Quem paga? Entre o idealismo do preservar porque ‘é belo’ e a realidade dos custos, que soluções são possíveis?
Por exemplo: uma casa antiga gera uma despesa pesada, mesmo fechada. Se demolida e vendido o terreno, os herdeiros, por exemplo, podem transformar a despesa em renda. Temas geográficos: valorização do terreno, crescimento das cidades, verticalização, infra-estrutura urbana, etc.
b) a Santa Casa de Misericórdia: nos primórdios era o limite da cidade. O que hoje é a Redenção era uma espécie de ‘estacionamento’ de carroças, cavalos, zona não ocupada. A Redenção era uma zona alagadiça, pouco valorizada.
c) o centro de POA não está no ‘centro’ de nada. A importância da água no ‘nascimento da cidade’. Viamão, mais antiga, perdeu o lugar para Porto em função da distância do Guaíba. Mostrar as partes que foram aterradas e conquistadas junto ao Guaíba. As cercanias da Rua da Praia foram aterradas (daí o nome). O homem ganhando espaço da natureza, do lago Guaíba.
d) a Rua da Praia (diferença de paisagem durante o dia e a noite). Lembrar que a Rua da Praia, até a década de 70 concentrava as grandes e importantes lojas de POA. Não havia nenhum shopping center. A vida social se dava mais ao ar livre, era chique sair bem vestido para andar na rua, inclusive na Rua da Praia. A questão da (in)segurança nos locais públicos é central hoje nas cidade brasileiras. Nem reparamos que, à noite, evitamos sair. Se saímos, o medo é companhia comum.
e) Podemos estimular os alunos a fazerem uma espécie de entrevista prévia sobre fatos, práticas e construções importantes que marcaram época e que hoje desapareceram.
f) De novo pode-se pedir para os alunos pesquisarem os nomes das ruas. Quem são os homenageados? Que grupos sociais representam? Como as fontes das informações são, muitas vezes, ‘romanceadas’, ‘idealizadas’ levando a construção dos heróis, dos mitos, etc.

Na biblioteca que é a vida há que se inventar leitores
Finalizo com dois autores que mostram quão borrados são os limites entre ficção e realidade. Sempre há, nas duas formas de ler o mundo (ciência ou ficção) o espaço para a interpretação, para a criação, para a fantasia do leitor. O que nos joga num terreno nem sempre firme, afinal, gostaríamos, tantas vezes, de termos certezas. Borges na “A biblioteca de babel” joga-nos na cara a fragilidade das leituras e interpretações ‘corretas’. Joga-nos numa quimera, numa ilusão, com sua literatura fantástica, que tanto parece absurda, mas que ao fim e ao cabo, fala de nosso mundo e nossas questões cotidianas:
Também sabemos de outra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Em alguma prateleira de algum hexágono[3](pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o compêndio perfeito de todos os demais: algum bibliotecário o percorreu e é análogo a um deus. Na linguagem desta zona persistem ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram em busca d’Ele. Durante um século cansaram de buscar em vão nas mais diversas direções. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava?”
Não há livro, teoria que nos dê acesso a bem interpretar o mundo. Há sim leitores, livros, labirintos, estudo e sonho!
Vasques (p. 24, 2008) nos provoca, em sua tese doutoral, na mesma direção:
Esta tese narra a construção de um percurso investigativo, do inventário enciclopédico à invenção de uma leitura. Caminho entre livros, teses e dissertações, onde o país das maravilhas é a própria aventura em busca da compreensão e conversação.(negritos meus)
E, logo adiante (p.77)
Caminhar por entrelugares, por entre as estantes e prateleiras do conhecimento científico-acadêmico, enfrentando seus labirintos, seus longos e tortuosos corredores, não é tarefa fácil. São tão grandes os abismos, que muitas passagens tornam-se impossíveis, erráticas, intraduzíveis, invisíveis. Acredita-se, contudo que compartilhar um mesmo espaço pode produzir encontros, diálogos, provocando assim outras instâncias e efeitos [...]. Ao interrogar nossas certezas aposta-se na fecundidade do encontro e da construção de uma leitura capaz de reinventar os modos de conhecer, acolher e valorar o outro: mantendo o livro e suas questões sempre em aberto.
Que complexo e belo: reinventar modos de conhecer e de acolher o outro. Não se trata só de uma postura epistemológica, mas de uma postura ética. Que dificuldade em manter aberta nossa mente ao novo, ao improvável, ao desconhecido, ao diferente de nossas crenças. Temos como ensinar tais valores aos nossos alunos, seja lá quais forem suas idades?
Não, não quero paralisar meu leitor (tantas são as possibilidades, tantas são as leituras, tão poucas as certezas...). O contrário, quero convidá-lo a vir comigo pois... são tantas as possibilidades, tantas são as leituras, tão poucas as certezas!
A vida, como nos diz Rosa (p. 302): “É no junto que a gente sabe bem, que a gente aprende o melhor [...]. Mas, por quê? Então o mundo era muita doidera e pouca razão?”. Ah, isso eu respondo, Rosa, o mundo é muita doidera e pouca razão, sim!
  Sigamos juntos, então! Mesmo que os labirintos de Borges sejam tantos. Bastam-me genéricos consensos: a busca de um mundo mais justo e solidário e, a crença, de que sua companhia e sua luta, irmão me acolhem, me são necessárias e me inspiram. Vem, junto, vem!?!
Porto nem sempre Alegre, outubro de 2009.

Referências
BORGES, Jorge Luis. A biblioteca de babel (p. 69-79). In: Ficções (1944). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
_______, Obras completas II:1952-1972. Buenos Aires: Emecé Editores, 2007.
BRAUN, Ani Maria S. Rompendo os muros da sala de aula: o trabalho de campo como uma linguagem no ensino de Geografia. (Dissertação de Mestrado), UFRGS, Instituto de Geociências, Porto Alegre, 2005.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 10. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005.
PESSOA, Fernando. Antologia poética. Seleção e apresentação de Isabel Pascoal. Lisboa: Biblioteca Ulisséia de Autores Portugueses, s/d.
KAERCHER, Nestor A. Hércules, Sísifo, Atlas eram professores? Garrafas e muitas dúvidas mais na formação de professores. In: REGO, Nelson (org) et alUm pouco do mundo cabe em suas mãos: geografizando em Educação o local e o global. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p. 75-103.
KAERCHER, Nestor A. Práticas geográficas para lerpensar o mundo, converentendersar com o outro e entenderscobrir a si mesmo. In: REGO, Nelson (org.) et alGeografia: práticas para o ensino médio. Porto Alegre: Artmed, 2007.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 36. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
VASQUES, Carla Karnoppi. Alice na biblioteca mágica: uma leitura sobre o diagnóstico e a escolarização de crianças com autismo e psicose infantil.Tese (Doutorado) PPG em Educação, UFRGS, Porto Alegre, 2008.


[1] Professsor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: nestorandre@yahoo.com.br.
[2] Redenção é um parque ao lado da FACED. Gravataí é um município distante uns 30 km de Porto Alegre.
[3] Borges esta falando da Biblioteca de Babel composta por infinitos hexágonos. Nela estariam todos os livros do mundo, todos eles traduzidos em todas as línguas.