quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

AS REFERÊNCIAS TEÓRICAS DA GEOGRAFIA ESCOLAR E SUA PRESENÇA NA INVESTIGAÇÃO SOBRE AS PRÁTICAS DE ENSINO




AS REFERÊNCIAS TEÓRICAS
DA GEOGRAFIA ESCOLAR
E SUA PRESENÇA
NA INVESTIGAÇÃO SOBRE
AS PRÁTICAS DE ENSINO


                                                                                              Beatriz Aparecida Zanatta*

Resumo: com o objetivo de subsidiar a discussão na disciplina Didática da Geografia,
o artigo apresenta uma reflexão sobre os fundamentos teórico-metodológicos das
propostas de ensino de Geografia, bem como um panorama dos resultados das pesquisas
sobre a prática de ensino dos professores de Geografia do Ensino Fundamental. A
conclusão indica o entendimento de que as propostas em estudo podem ser situadas no
âmbito de duas abordagens, a histórico-crítico-dialética e a fenomenológico-hermêutica.
Em relação às práticas, o que se percebe é o distanciamento em relação à produção
acadêmica sobre o ensino de Geografia.
Palavras-chave: Geografia, Geografia Escolar, prática educativa, didática

Presume-se que a investigação de bases teóricas para o ensino de
Geografia tenha como objetivo influenciar a prática docente e, assim,
alcançar certos resultados de aprendizagem dos alunos. Na produção atual
sobre o ensino de Geografia, algumas propostas teóricas têm sobressaído,
fato que pode ser comprovado pela menção delas em pesquisas sobre
práticas de ensino, indicação em concursos de seleção de professores e
pela presença e participação de seus autores em congressos e encontros.
O objetivo deste texto é, com base na consulta a publicações de textos e
artigos e a teses e dissertações, verificar a relação do formato assumido
pelas práticas de ensino, tal como revelado nas pesquisas, ante as propostas
teóricas para o ensino de Geografia em evidência nos últimos anos.
As propostas teóricas mencionadas foram divulgadas ao longo da
década de 1990 e na primeira metade dos anos 2000. São apresentados
três autores, porém julgou-se necessário inserir os Parâmetros Curriculares
Nacionais de Geografia, por constituírem, obviamente, material de
consulta na elaboração de planos de ensino de Geografia.
286 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
Cumpre observar que as obras citadas não são as únicas que têm
servido de suporte na elaboração de planos de ensino e na orientação
metodológica das práticas de ensino. A sua escolha deu-se pela sua maior
representatividade na citações em relatórios de pesquisa, publicações e
trabalhos de pós-graduação.
Neste texto, são apresentadas considerações sobre as propostas
de ensino e as práticas da Geografia escolar brasileira. Ao fazer isso,
pretende-se indicar as bases teóricas que fundamentam a reflexão teórico-
prática do ensino de Geografia e delinear, com base nas pesquisas
sobre o assunto, o perfil das práticas de ensino de Geografia no Ensino
Fundamental. Para essa tarefa, tomo como referência temporal a década
de 1990 e utilizo as contribuições de especialistas da área que têm se
destacado na pesquisa sobre o ensino de Geografia, bem como minhas
próprias reflexões sobre essa temática explicitadas em outros trabalhos.
A organização do texto é feita em três partes, da seguinte forma: a
primeira apresenta um breve relato dos principais acontecimentos da década
de 1990 e suas implicações na ciência geográfica e no ensino de Geografia;
a segunda traz reflexões sobre as propostas de ensino de Geografia, com
vistas a indicar aproximações e diferenças entre elas; a terceira destaca
os elementos da prática de ensino dos professores de Geografia em sua
possível correspondência com as propostas teóricas analisadas.
A CIÊNCIA GEOGRÁFICA E O ENSINO DE GEOGRAFIA
NO CONTEXTO DA DÉCADA DE 1990 E PRIMEIRA METADE
DOS ANOS 2000
A década de 1990 foi considerada um período de grandes mudanças
em todas as esferas da sociedade. Essas mudanças colocaram como
desafio para as diferentes áreas científicas, especialmente para as ciências
humanas, a necessidade de refletir sobre os limites das abordagens
teóricas então vigentes para compreender as transformações no mundo
e na organização da sociedade.
Os princípios que sustentaram os modelos teóricos mais prestigiados
da ciência moderna foram então vistos com desconfiança perante
a diversidade social, as estratégias da economia mundial e, sobretudo,
determinados componentes da realidade, como cultura e meios de comunicação.
Tratava-se portanto, da necessidade de um modelo teórico
que pudesse levar em conta as condições existentes na sociedade sem se
deixar influenciar por “realidades desejadas” (GOMES, 1996).
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 287
Essa preocupação gerou reflexões e análises que desencadearam
intensos debates no pensamento filosófico e nas diversas áreas científicas,
particularmente na ciência geográfica e no modo de se trabalhar essa
ciência como matéria escolar.
Sobretudo na Geografia, as críticas que colocaram em questão
os limites teóricos e práticos das perspectivas vigentes, basicamente a
clássica (ou tradicional ou positivista) e a analítica (ou nepositivista ou
quantitativa), datavam de bem antes. Podemos situá-las nos anos 1970,
ou mesmo um pouco antes, com o movimento de maio de 1968, a guerra
do Vietnã, a ascensão do feminismo e o surgimento da New Left. Nessa
época, surge na Europa e nos Estados Unidos e, mais tarde, no Brasil
uma corrente que buscava inserir a Geografia Humana Crítica no quadro
explicativo do marxismo.
O movimento crítico surgiu, assim, em função da crítica ao saber
da Geografia até então produzido e da responsabilidade e do compromisso
político de geógrafos com a sociedade e com o papel social da Geografia.
Com essa preocupação, a Geografia Crítica marxista fixou como meta
prioritária a denúncia da despolitização ideológica do saber e do fazer
das Geografias vigentes.
Como atestam Mendoza et al. (1982), o movimento que resultou
em projetos e construções com base numa caracterização marxista do
espaço não foi, desde o início, monolítico. As diferentes vinculações
a esse pensamento estão associadas com as posições ortodoxas, estruturalistas
e humanistas. Conforme interpretação de Capel e Urtega
(1991), o marxismo assumido por muitos geógrafos radicais possui
“forte traço historicista”, o que o aproxima da Geografia Humanista,
cujos fundamentos são o existencialismo e a fenomenologia. Mendoza
et al. (1982) também observam que a denúncia de Lacoste sobre os
conteúdos ideológicos e estratégicos do saber geográfico e suas relações
com o poder aproximam-se das preocupações de Michel Foucault. No
Brasil, Moraes (1988) esclarece que a formulação de peso que surgiu
no marxismo ocidental nas últimas décadas é a de Louis Althusser.
Segundo o autor, tal proposta direciona-se como um esforço de objetivação.
Althusser vê o marxismo como ‘ciência’, e busca apreender
os seus procedimentos lógicos e essenciais. Observa, ainda, que há
nesse posicionamento uma nova investida da positivação do marxismo
sob a égide de uma influência do estruturalismo. Ao comentar sobre
as posições que permeiam o debate marxista contemporâneo, Moraes
(1991, p. 90) assim se expressa:
288 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
[...] o debate marxista (em sua ampla variedade) avança no diálogo
entre duas posições antagônicas. De um lado, a perspectiva que se
poderia denominar de estrutural, preocupada em captar regularidades
na armação dos processos, interessada em definir padrões e
papéis, permeada por uma ótica funcional ou sistêmica. De outro, a
corrente historicista, atenta à singularidade, buscando estabelecer
mediações, e orientada para a visão do processo e de continuidade
histórica. Estas duas macrovertentes expressam-se por conteúdos
diferenciados, porém respondendo sempre nos debates teóricos a
preferência pela estrutura ou pela história. O universo da relação
entre política e cultura vai ser destacado na segunda visão, o que
é revelador de sua ausência na discussão geográfica marxista,
prioritariamente guiada pela primeira concepção.
Em que pesem as diferentes vinculações ao pensamento marxista,
o ponto comum dessas análises reside na aceitação da existência de
relações mútuas e complexas entre sociedade e espaço e entre processos
sociais e configurações espaciais.
No Brasil, esse movimento se manifestou a partir de meados
da década de 1970 e se desenvolveu nos anos posteriores, sendo o III
Encontro Nacional de Geografia, realizado em 1978, um dos seus marcos,
conforme Andrade (1987), Moreira (1992) e outros. Desde então,
os geógrafos que assumiram a posição antipositivista passaram, com
base nos pressupostos teóricos e metodológicos da Geografia Crítica,
a questionar os fundamentos epistemológicos da Geografia Positivista
e a propor novos caminhos para a ciência geográfica e a prática do seu
ensino. Dentre eles, podem-se destacar os nomes de Antônio Carlos R.
Moraes, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Armando Correia da Silva,
Carlos Walter P. Gonçalvez, José W. Vesentini, Milton Santos, Ruy
Moreira, Wanderley M. Costa, que contribuíram para repensar a ciência
geográfica.
Na virada dos anos 1980 para os de 1990, o pensamento geográfico
construído sobre uma base crítica de cunho marxista passou a
receber duras críticas. Essas críticas foram endossadas por reflexões
sobre o desempenho mundial dos regimes políticos dos países do Bloco
Socialista e culminaram com o acontecimento emblemático da queda do
muro de Berlim, em novembro de 1989. Criticavam-se, basicamente, os
postulados das formulações marxistas ortodoxas, como, por exemplo, a
primazia aos fatores econômicos, o reducionismo das lógicas explicativas
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 289
da realidade atrelando a superestrutura às injunções da infraestrutura. As
interpretações classistas do social, que postulavam a compreensão do
processo histórico como sucessão de lutas de classes, e a valorização de
categorias, como, por exemplo, “modo de produção”, para interpretar
a realidade colocaram em segundo plano as especificidades históricas
de cada contexto. Além disso, o conceito de ideologia foi considerado
insuficiente, dado seu vínculo com as determinações de classe e com o
mecanismo de dominação e subordinação. Como já observara Harvey
(1993), o que se criticava era a perspectiva do materialismo histórico
geográfico como um corpo fixo e fechado de compreensões.
Não obstante, as análises fundamentadas no materialismo histórico
e dialético evoluíram em outras perspectivas e possibilitaram análises da
realidade social mais abertas, dinâmicas e flexíveis, que reconhecem a
diferença, a alteridade, aspectos da organização social como raça, gênero,
religião, a importância das práticas estéticas e culturais e a importância da
análise da produção de imagens e das dimensões do tempo e do espaço.
Essa redefinição do campo da análise marxista possibilitou apreender
a significação das transformações que estão ocorrendo na organização
das sociedades. No interior dessa tendência, podem ser mencionados os
trabalhos de Harvey (1993) e Soja (1993), entre outros.
Nessa temporalidade, tornou-se gradativamente expressivo o interesse
de um maior número de geógrafos pela Geografia Humanista e
Cultural, que propõe, com base na fenomenologia e no existencialismo,
interpretar os aspectos especificamente humanos do mundo vivido e enfatizar
o lugar concreto das ações humanas, a subjetividade, os valores,
os sentimentos, a cultura, a experiência, o simbolismo, a identidade, a
intersubjetividade, a comunicação e a intuição. Nas palavras de Mello
(1990, p. 92),
Com base na experiência vivida, a Geografia humanista objetiva
interpretar o sentimento e o entendimento dos seres humanos a
respeito do lugar [...] centraliza no homem, enquanto ser pensante,
uma importância vital, visando a compreender e a interpretar os
seus sentimentos e entendimentos do espaço e, até mesmo, como a
simbologia e o significado dos lugares podem afetar a organização
escolar.
Essa tendência chamou a atenção dos especialistas do ensino de
Geografia para a importância da valorização da dimensão afetiva, do
290 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
significado do lugar, do sentimento de pertencimento e das representações
do espaço vivido no processo de conhecimento do aluno. Nessa linha,
Frèmont (1997), ao defender a ideia de que o trabalho pedagógico deve
estar relacionado ao espaço vivido, sugere que a realidade do aluno deve
ser a referência para a compreensão do espaço em suas diferentes escalas.
Segundo esse autor, as representações, o espaço vivido e a Geografia da
percepção constituem um belo campo de pesquisa contemporânea para
o ensino de Geografia. Nesse processo, Frèmont (1997) destaca a importância
de se levar em conta o espaço dos outros para tornar objetivo o
cruzamento das representações acumuladas. Além dessa autora, podem
ser considerados como pertencentes a essa abordagem os trabalhos de
Ballesteros (1992) e Yi-fu-Tuan (1980), entre outros.
No campo do ensino, uma característica da década de 1990 foi o
considerável crescimento das pesquisas voltadas para o ensino e a aprendizagem
de Geografia. Atestam isso os levantamentos sobre a produção
de teses e dissertações realizados por Cavalcanti (1998), Pontuschka
(1999) e Zanatta (2003).
O levantamento realizado por Cavalcanti (1998) e Zanatta (2003)
demostra que nessa década foram produzidos 46 trabalhos sobre o ensino
de Geografia. Entre estes, mais de 40% dos títulos se referem a questões
de metodologia e prática de ensino de Geografia nos níveis de Ensinos
Fundamental e Médio. Da mesma forma, o levantamento de Pontuschka
(1999) sobre o acervo de teses e dissertações do departamento de
Geografia e de Educação da Universidade de São Paulo (USP) também
evidencia que, na década de 1990, há maior investimento nas pesquisas
relacionadas à metodologia de ensino, tais como: educação ambiental na
visão do geógrafo; o ensino de Geografia e os métodos interdisciplinares;
o desenvolvimento de conceitos como o de paisagem; a linguagem das
imagens na construção de conceitos; a importância do vídeo em sala de
aula etc. Em geral, essas pesquisas mostram os problemas do ensino de
Geografia e apresentam propostas alternativas que indicam novos encaminhamentos
para a reestruturação da Geografia Escolar.
Também merece destaque a preocupação – por parte dos autores
que investigam Geografia escolar – no intuito de ampliar a discussão sobre
o ensino de Geografia para além da simples definição de conteúdos, de
vincular o ensino de Geografia a uma reflexão pedagógica e de considerar
o aluno sujeito do processo de ensino e aprendizagem, conforme
atestam, por exemplo, as propostas de Vesentini (1987), Pereira (1995),
Santos (1995) e Cavalcanti (1998, 2002), entre outros.
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 291
Outro acontecimento da década de 1990 foi a divulgação e aprovação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em
dezembro de 1996. Nesse contexto, estabeleceu-se, de forma bem mais
incisiva, a discussão sobre questões relacionadas à formação de professores
e de todos os profissionais da educação. Como resultado dessas
discussões, foi implementada uma política de formação de professores,
estabelecendo alteração no tempo mínimo para formação de professor e
no eixo central de formação docente, sendo uma de suas questões mais
polêmicas a impossibilidade de existir duas habilitações nos projetos
que formam professores. Nesse contexto, implementou-se no país um
processo de reforma dos cursos de Graduação e, essencialmente, da
formação de professores.
Em meio a esses acontecimentos, ocorre a divulgação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), em 1998, pelo Ministério da
Educação, particularmente da proposta de Geografia consolidada neste
documento.
A divulgação e a implantação dos PCNs de Geografia reacenderam
a discussão sobre o modo de pensar, fazer e ensinar Geografia apresentada
na proposta de Geografia deste documento, discussão que foi alimentada
por especialistas da área como Oliveira (1999) e Pontuschka (1999). Todavia,
importa destacar que o posicionamento dos geógrafos diante dos
PCNs é bastante diversificado. Os que apoiam o documento argumentam
a favor da necessidade de uma orientação curricular nacional, seja pelo
caráter democrático de indicação de conteúdos básicos, que devem ser
transmitidos a todos os jovens, seja pela diversidade regional de nosso
país. Os que o recusam alegam que um currículo deve nascer no seio
dos processos culturais no quais as pessoas vivem e, por conseguinte,
valorizar as culturas particulares, as diferenças, as diversidades de classe
social e gênero, os diferentes discursos e subjetividade. Em função dessa
associação entre currículo e diferenças, considera-se que não faz sentido
o currículo oficial.
Como resultado da discussão sobre a proposta de ensino de Geografia
apresentada nos PCNs, surgiram modos alternativos e mais autônomos
de trabalho com o ensino de Geografia sem vínculo explícito com
a orientação da proposta oficial. Daí a importância de se compreender os
pontos comuns e, talvez, revelar as diferenças entre seus autores, já que
todas elas se colocam como orientações de reestruturação da Geografia
Escolar para que ela cumpra melhor sua tarefa social. Embora deva ser
considerado positiva a existência de diferentes posições sobre o que deve
292 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
ser a Geografia Escolar, considero importante buscar pontos comuns
entre essas orientações (oficiais ou não), já que todas elas constituem
tentativas de reestruturação da Geografia Escolar.
AS PROPOSTAS DE ENSINO DE GEOGRAFIA ELABORADAS
ENTRE 1995 E 2005
As orientações mais recentes de reestruturação da Geografia
Escolar para que ela cumpra melhor sua tarefa social encontram-se explicitadas
em propostas de ensino alternativas e oficiais. Em relação às
propostas oficiais, a opção nesse estudo foi pelos PCNs de Geografia,
por constituírem uma das mais expressivas iniciativas do Ministério da
Educação da década de 1990, dentro de um programa de reforma educacional
no Brasil, no qual se destaca a elaboração de um currículo básico
nacional. Quanto às propostas alternativas, ou seja, propostas elaboradas
por pesquisadores das universidades, a opção se deu pelas contribuições
de alguns especialistas que têm se destacado na pesquisa sobre o ensino
de Geografia, como Cavalcanti (1998, 2002), Callai (1998a, 1998b,
1998c, 1999), Kaercher (1997, 1998a) e os PCNs (SEE, 1998a, 1998b).
A seleção desses autores é arbitrária e certamente incompleta. Resulta de
um breve levantamento sobre as propostas de ensino de Geografia. Não é
minha pretensão fazer aqui um mapeamento completo dessas propostas.
É uma tarefa difícil, porém, necessária para ampliar a compreensão das
propostas de ensino que orientam a prática de professores de Geografia
do Ensino Fundamental.
Em que pesem as diferenças entre os fundamentos teórico-metodologicos
das propostas mencionadas, há entre elas uma preocupação
comum no sentido de ampliar a discussão sobre o ensino de Geografia
para além da simples definição dos conteúdos. Outro ponto comum é o
fato de explicitarem as possibilidades de a Geografia e a prática de ensino
cumprirem seu papel na formação da cidadania.
As ideias que despontaram e adquiriram expressividade no âmbito
do ensino de Geografia a partir do final da década de 1990 e na primeira
metade do ano 2000 são as seguintes:
• seleção dos conceitos geográficos básicos para estruturar os conteúdos
de ensino;
• valorização das diferentes dimensões dos conceitos geográficos para a
construção de atitudes, ações e valores que norteiam comportamentos
socioespaciais;
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 293
• a “Geografia do aluno”, ou seja, as representações sociais deste como
referência do conhecimento geográfico construído em sala de aula;
• o reconhecimento da relevância da dimensão afetiva no processo de
conhecimento;
• a articulação dos componentes do processo de ensino, ou seja, objetivos,
conteúdos e métodos;
• o construtivismo como atitude básica do trabalho com a Geografia
Escolar.
No balanço geral dessas propostas, pode-se perceber que a elas
foram incorporados temas relativos a cultura, cidadania, diferença,
afetividade, subjetividade, valores, gênero, representações do espaço
vivido e alteridade, entre outros. Além disso, constata-se a referência
aos conceitos básicos da análise geográfica, tais como o espaço, o lugar,
a paisagem, o território e a região, entre outros, como norteadores de
toda estruturação dos conteúdos de ensino. Conforme registrado, tanto os
temas como os conceitos se fazem presentes nas abordagens geográficas
que fundamentam a produção atual sobre o ensino de Geografia, como
Geografia Crítica e Geografia Humanista/Cultural.
Então, onde estão as diferenças das propostas – oficial e alternativas
– para o ensino de Geografia se essas diferenças não podem ser
apreendidas com base nos elementos mais gerais da fundamentação
teórica das concepções críticas da Geografia?
Um ponto de partida para se responder essa questão consiste na
identificação da concepção de Geografia, da concepção pedagógico-
-didática, da compreensão sobre a relação entre o local e o global, da
relação entre a realidade natural e social, entre outras concepções que
possibilitam estabelecer um vínculo, ainda que de forma bem ampla,
entre as propostas e as abordagens predominantes na década de 1990 e
primeira metade dos anos 2000.
CONCEPÇÃO DE GEOGRAFIA
Tomando como referência a concepção de Geografia explicitada
nas propostas em estudo, pode-se dizer que, em geral, as propostas alternativas
apresentam elementos que indicam seu vínculo a uma concepção
crítico-dialético. Dentre as principais ideias postuladas por essa abordagem,
pode-se mencionar a de movimento, a compreensão do espaço
como produto social, a relação sociedade/natureza em sua historicidade,
a de contradição e a compreensão da Geografia como ciência social.
294 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
Essa concepção pode ser inferida com base nos trechos seguintes das
propostas em estudo:
O cerne desta ciência, [é] o ‘espaço geográfico’ entendido como
aquele espaço ‘fruto do trabalho humano’ na necessária e perpétua
luta dos seres humanos pela sobrevivência. Nessa luta o
‘homem usa, destroi/constrói/modifica a si e a natureza’. O homem
faz Geografia à medida que se faz humano, ser social. Fica
claro que a relação sociedade-natureza é indissociável/eterna
(KAERCHER, 1998a, p. 11).
‘A Geografia é uma a ciência social’ [...] que estuda, analisa e
tenta explicar (conhecer) ‘o espaço produzido pelo homem’. Ao
estudar certos tipos de organização do espaço, procura compreender
as causas que deram origem às formas resultantes das
relações entre sociedade e natureza. Para entender essas, faz-se
necessário ‘compreender como os homens se relacionam entre si’
(CALLAI, 1998a, p. 55).
[...] ‘Geografia é uma ciência que estuda o espaço produzido e
reproduzido pela sociedade ao longo da História’. Ou seja, é o
estudo do espaço geográfico, entendendo por espaço ‘um conjunto
de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento’
(CAVALCANTI, 1998, p. 127).
O que foi exposto evidencia que os autores concebem a Geografia
como uma ciência social e o espaço geográfico como resultado de ações
sociais concretas da sociedade que o produziu. Além disso, evidencia um
eixo fundamental da análise marxista, isto é, a noção de historicidade dos
fenômenos, a qual, para a concepção fenomenológica, não é importante.
No que se refere aos conceitos básicos da Geografia, Kaercher
(1998a), Callai (2000) e Cavalcanti (1998) recomendam trabalhar o conceito
de lugar como resultado de um processo dialético entre a mundial
idade em constituição e a especificidade histórica do particular. Nesse
processo, o lugar como meio de manifestação da globalização recebe o
impacto das transformações provocadas pela globalização em função de
suas particularidades, e, ao mesmo tempo, a eficácia das ações globais
encontra-se na dependência das possibilidades da materialidade de suas
ações nos lugares. Do mesmo modo, o lugar, como manifestação da
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 295
identidade, do coletivo e do subjetivo, pode desenvolver resistências à
globalização. Nas palavras dos autores mencionados,
[...] mais importante do que localizar é relacionar os lugares e as
sociedades que ali habitam, sempre tendo em mente a globalização
da sociedade mundial que cada vez mais se integra, ainda que
com diferentes poderes e direitos (KAERCHER, 1998a, p. 19).
É o nível do local que traz em si o global, assim como o regional
e o nacional. [...]. A globalização e a localização, fragmentando
o espaço, exigem que se pense dialeticamente essa relação, pois,
‘cada lugar é, à sua maneira, o mundo (CALLAI, 2000, p. 84).
[...] a compreensão da globalização requer a análise das particularidades
dos lugares, que permanecem, mas não podem ser
entendidas nelas mesmas. O que há de específico deve ser encarado
na mundialidade, ou seja, o problema local deve ser analisado
enquanto problema global [...] (CAVALCANTI, 1998, p. 90).
Embora o posicionamento dos autores anteriormente mencionados
indiquem o vínculo de suas ideias com a concepção dialética, existe
entre eles diferenças de análises e de propostas, explicitadas por meio
do vinculo a determinadas diretrizes pedagógico-didática, conforme
explicitaremos a seguir.
CONCEPÇÃO PEDAGOGICO-DIDATICA
O foco da discussão de Cavalcanti (1998) é a metodologia de
ensino. Para tratar essa questão, a autora articula saberes da Geografia
com o pensamento de Vigotsky e com as contribuições da pedagogia
crítico-social dos conteúdos. Seguindo esta orientação, atribui significado
especial à construção dos conceitos geográficos pautados nas representações
sociais dos alunos, construídas com base em seu cotidiano e na
relação destes com os conceitos científicos.
Na produção de Kaercher (1997), percebe-se maior preocupação
com questões relacionadas com a prática de ensino e com a construção
do conhecimento por meio de temas geradores relacionados
aos conceitos e vivências espaciais cotidianas dos alunos, como,
por exemplo, problemas de um lugar, conflitos, questão ecológica,
296 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
discriminações racial, da mulher e dos homossexuais, extermínio de
grupos indígenas, questões urbanas, entre outros. Isso significa que,
para Kaercher (1997), o ensino de Geografia deve ter como ponto
de partida a sociedade local e suas contradições, de modo a permitir
uma leitura plural e aberta do mundo para que o educando tenha uma
tomada maior de consciência de sua própria realidade. Daí, a proposição
de um ensino comunitário, ligado aos costumes e à cultura
local da população a ser educada. O que Kaercher (1997) propõe é
articular a concepção dialética de Geografia com as contribuições de
Paulo Freire. Em suas análises e reflexões, também é possível perceber
a preocupação em superar uma visão de ensino reprodutor de
conhecimento e em assumi-lo como atividade de construção coletiva
do saber. Ao postular a ideia de conhecimento como um construção
do sujeito ante o mundo, ele recomenda:
Combater a visão de currículo que privilegia a informação e a
quantificação ou a fragmentação do saber. A criação deve ser
enfatizada. Aliar a informação com a reflexão. Buscar mais de
uma versão para o fato. Mostrar os conflitos de interesse as mensagens
nas entrelinhas dos textos (KAERCHER, 1997, p.136-7).
Por sua vez, Callai (1998a) demonstra maior preocupação com
a questão dos conteúdos a serem trabalhados nas séries iniciais do
Ensino Fundamental e, dentre esses, destaca o município e a cidade.
A autora sugere que o trabalho com esses conteúdos favorece o
desenvolvimento de conceitos como espaço, paisagem, sentimento
de pertencimento ao lugar, identidade, diferença e cultura, numa
perspectiva interdisciplinar.
Nos PCNs de Geografia, o que se verifica é que este documento
não explicita com clareza sua concepção de Geografia. Nele, é possível
identificar elementos que caracterizam diferentes concepções de Geografia,
o que conduz a múltiplas interpretações. A exemplo disso, alguns
elementos que indicam o vínculo desse documento com a Geografia
Humanista podem ser identificados na medida em que seus autores enfatizam
a importância de se trabalhar as dimensões subjetivas e, portanto,
singulares “[...] do espaço geográfico e as representações simbólicas que
os alunos fazem dele” (SEE, 1998b, p. 61). Outro exemplo refere-se ao
entendimento do conceito de lugar como espaço que se torna familiar ao
indivíduo, o espaço vivido, experienciado, conforme a seguir:
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 297
[...] lugar traduz os espaços com os quais as pessoas têm vínculos
afetivos: uma praça onde se brinca desde criança, a janela de
onde se vê a rua, o alto de uma colina de onde se avista a cidade.
O lugar é onde estão as referências pessoais e os sistemas de valores
que direcionam as diferentes formas de perceber e construir
a paisagem (SEE, 1998b, p. 29).
Da mesma forma, elementos da concepção dialética podem ser
identificados nos PCNs de Geografia quando seus autores se referem ao
objetivo da Geografia, aos conceitos de paisagem e de espaço e à relação
entre o local e o global. Alguns trechos do documento servem para ilustrar:
[...] o espaço na Geografia deve ser considerado como uma
totalidade dinâmica em que interagem fatores naturais sociais,
econômicos e políticos . [...] a escala local/global na abordagem
de um tema deverá estar sempre levando em consideração que
existe uma reciprocidade na forma como as duas se interagem.
[...] O importante é que não se perca essa relação dialética na
explicação, mesmo porque, na realidade atual os meios de comunicação
colocam a informação de forma instantânea e simultânea.
Portanto, apresentam o mundo onde a dicotomia do local com o
global cada vez menos é percebida. [...].
Quando se pensa aquilo que ocorre num determinado local e as
influências que chegam de fora, deve-se admitir que existem forças
internas específicas desses locais que podem atenuar, reforçar ou
mesmo resistir a essas influências (SEE, 1998b, p. 28-31).
A Geografia Escolar expressa nos PCNs recomenda o construtivismo
como orientação básica do trabalho com a Geografia Escolar. Essa
recomendação pode ser inferida nos seguintes trechos:
[...] uma opção metodológica que considera a atuação do aluno
na construção de seus próprios conhecimentos valoriza suas
experiências, seus conhecimentos prévios e a interação professor-
-aluno e aluno-professor buscando essencialmente a passagem
de situações em que o aluno é dirigido por outrem a situações
dirigidas pelo próprio aluno. [...]
As abordagens atuais da Geografia têm buscado práticas pedagógicas
que permitam apresentar aos alunos os diferentes aspectos
298 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
de um mesmo fenômeno em diferentes momentos da escolaridade,
de modo que os alunos possam construir compreensões novas e
mais complexas a seu respeito (SEE, 1998b, p. 89, 115).
Espera-se que, ao longo dos oito anos do ensino fundamental,
os alunos construam um conjunto de conhecimentos referentes
a conceitos, procedimentos e atitudes relacionadas à Geografia
(SEE, 1998b, p. 121).
Nos PCNs de Geografia, alguns conceitos são recomendados como
norteadores de toda a estruturação dos conteúdos da 1ª fase do Ensino
Fundamental (1º e 2º ciclos) e da 2ª fase (3º e 4º ciclos), como lugar, paisagem
e território e região. Sobre esses conceitos, o documento esclarece:
Outro critério fundamental na seleção de conteúdos refere-se
às características de análise da própria Geografia. Procurou-se
delinear um trabalho a parir de algumas categorias consideradas
essenciais paisagem, território, lugar e região. A partir delas
e que podemos identificar a singularidade do saber geográfico
(SEE, 1998b, p. 139).
Ante essas evidências, entendemos que a proposta dos PCNs de
Geografia resulta de uma postura híbrida, uma vez que sua construção
tem como eixo uma diversidade de concepções geográficas fato que
dificulta aos professores estabelecer limites e diferenças entre o oficial
e o alternativo.
Por fim, vale ressaltar que as considerações feitas nesse item
evidenciam, ainda que de forma bastante ampla, a diversificação das
concepções teóricas, tanto da Geografia, quanto pedagógico-didáticas,
que passaram a fundamentar as propostas de reestruturação da Geografia
Escolar na década de 1990. Vejamos a seguir o que mostram as pesquisas
sobre a maneira pela qual essas propostas estão sendo incorporadas ao
ensino de Geografia.
AS PRÁTICAS DE ENSINO DE GEOGRAFIA
Conforme mencionado, as pesquisas sobre o ensino de Geografia
aumentaram quantitativa e qualitativamente nas últimas décadas do
século XX. Gradativamente, tem-se constatado um incremento na pre,
Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 299
ocupação de se conhecer mais e melhor o papel da Geografia Escolar e
a maneira como se realiza seu ensino e sua aprendizagem. Mas o que
dizem as pesquisas sobre a prática de ensino dessa disciplina?
Estudos realizados por Kaercher (1997, p. 67) confirmam que a
renovação do ensino da Geografia brasileira já possui “[...] quinze anos,
mas o seu sopro renovador ainda está distante da maioria das salas de
aula de primeiro e segundo graus”. Da mesma forma, Cavalcanti (1998,
p. 21) chama a atenção para duas questões fundamentais:
[...] os modestos efeitos na prática de ensino dos professores
de Geografia, comparados com os questionamentos, análises e
propostas ‘renovadas’ feitos em nível teórico e a reflexão dessa
prática a partir de uma referência pedagógico-didática, também
incipiente.
Em relação aos conteúdos geográficos, Braga (1996) e Gebran
(1996) afirmam que, na maior parte das escolas brasileiras, predomina
uma prática essencialmente tradicional.
Segundo Braga (1996, p. 216), ainda hoje é comum a ideia de que
“[...] a Geografia deve estudar as coisas [...]”, ou seja, a montanha, o rio,
a floresta, o solo, a indústria, a cidade, os transportes etc. Identificá-las
e descrevê-las são atividades que se encontram presentes na prática
cotidiana dos estudos geográficos nas escolas.
Gebran (1996) constatou que, nas séries iniciais do primeiro grau,
os conteúdos são abordados de forma superficial, compartimentada e
descontextualizada, favorecendo o desenvolvimento de atividades de
caráter mecânico e repetitivo que dificultam a construção de noções e
conceitos básicos. Verificou-se ainda que algumas tentativas de inovação
sugerem atividades de observação do meio, com base no contexto do
aluno. Contudo, na prática, essa ação se limita à reprodução de textos,
às descrições formais e informativas que visam à memorização. Nas
palavras de Gebran (1996, p. 9),
[...] as análises do processo no cotidiano da sala de aula revelam
que se insiste em um ensino de Geografia preocupado com a supervalorização
da memória, [...] em detrimento do entendimento
e da compreensão. Esse processo, de certa forma, leva a uma
paralisia da atitude crítica do aluno e reforça, cada vez mais, a
incapacidade de estabelecimento de relações entre os conhecimen300
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
tos adquiridos, sem evidenciar as condições sócio-econômicas,
culturais e históricas da realidade social.
Carvalho (1998, p. 88), por sua vez, em pesquisa com professores,
verificou que, em relação aos conteúdos, há algumas alterações
que evidenciam a repercussão das mudanças propostas para o ensino
de Geografia. Para exemplificar, a autora ressalta que, durante o estudo
das regiões e da população brasileira, as professoras evitaram a
memorização de nomes, “[...] questões políticas foram aventadas e não
se apresentou uma sociedade homogênea”. Entretanto, a autora indica
também como problema o distanciamento do conteúdo da realidade.
Em suas palavras,
A conclusão a que, infelizmente, se chega é que as mudanças, mesmo
incluindo alguns tópicos, como os citados no parágrafo anterior,
sempre percebidos como ausentes por aqueles que criticaram as
Geografias tradicionais, não trouxeram vida e nem brilho aos
novos conteúdos.
A esse respeito, Pontuschka (1999, p. 113) argumenta que,
mesmo sendo a crítica ao ensino de Geografia da primeira metade do
século XX feita pelo fato de os geógrafos se preocuparem sobretudo
com os conteúdos escolares, ou seja, o que ensinar e não como ensinar,
“[...] ainda não podemos dizer que os métodos de ensino mais
inovadores e democráticos hoje estão aplicados nas escolas do país”.
Pedagogicamente, a problemática que diz respeito à relação
conteúdo/método de ensino tem resultado em sérias dificuldades enfrentadas
na sala de aula. Cavalcanti (1998, p. 12), ao comentar acerca das
deficiências do ensino e da aprendizagem, faz a seguinte ponderação:
[...] os alunos não conseguem formar um raciocínio geográfico
necessário à sua participação ativa na sociedade; não
conseguem assimilar de modo autônomo e criativo as bases
da ciência geográfica que propiciem a formação de convicções
e atitudes a respeito da espacialidade da prática social. Também
não conseguem formar relações entre os conteúdos que
são transmitidos nas aulas de Geografia e as determinações
espaciais que permeiam, direta ou indiretamente, sua prática
social diária.
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 301
Outro problema mencionado por Souza e Katuta (2001, p. 124)
diz respeito ao fato de a Geografia Crítica ter valorizado, num primeiro
momento, a discussão sobre o método de leitura da realidade. Na opinião
desses autores, o movimento crítico relegou a segundo plano as
reflexões sobre os conhecimentos técnicos cartográficos. Além disso, a
crítica sobre os conteúdos tradicionais acabou contribuindo para que o
professor entendesse que seria necessário abandonar “[...] tudo o que fazia
parte da ‘Geografia Tradicional’ para se tentar construir uma Geografia
realmente crítica”.
A relação Geografia/Cartografia é um assunto que tem merecido
especial atenção dos pesquisadores que buscam propor práticas mais adequadas
para o desenvolvimento da habilidade de mapear e ler a realidade.
Kaercher (1997) e Cavalcanti (1998), em pesquisas realizadas com
alunos do Ensino Fundamental, constataram forte associação entre os
termos Geografia e mapa. Os dados levantados permitiram deduzir que
o mapa é a imagem mais forte da Geografia na escola.
De acordo com Kaercher (1997, p. 108), as palavras que mais
se destacaram no depoimento dos alunos foram: “[...] Mapa, Terra (=
planeta), população, mundo, [...] clima, relevo, vegetação, hidrografia”,
o que demonstra o quanto a Geografia tradicional de cunho positivista
permanece viva na prática dos professores. Não obstante, o autor ressalta
que existem professores produzindo uma Geografia renovada e diferenciada
da tradicional, assim como alguns livros didáticos.
Nesse sentido, é oportuna a observação de Braga (1996) segundo
a qual a dificuldade de objetivação do discurso crítico se explica pela
fragilidade teórica de seus mensageiros em relação a um conteúdo científico
que possibilite decodificar a realidade. Essa constatação indica
a necessidade de se investir teórica e praticamente na formação dos
professores de Geografia.
A pesquisa de Cavalcanti (1998, p. 171) confirma a dificuldade
das professoras em dominar teoricamente os conceitos básicos da ciência
geográfica. Os depoimentos demonstraram que os conceitos definidos
por boa parte das professoras expressaram simplesmente vivências de
seu cotidiano. Assim, a autora ressalta que as formulações teóricas dos
professores “[...] foram similares às dos alunos, ressalvadas as diferenças
de idade e de maturidade”. Para ilustrar, destaca o entendimento sobre
o conceito de paisagem de uma professora que cursava o último ano do
bacharelado: “[...] paisagem lembra natureza em geral” e, para isso, a
caracteriza pelo que se vê “da janela de um carro, numa viagem [...]”. A
302 , Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010.
mesma ideia aparece quando diz: “[...] pro lado de Senador Canedo tem
um morro lá que chama bastante atenção [...]”.
Da mesma forma, as situações que se tem vivenciado com professores
do Ensino Fundamental e alunos universitários demonstram que
uma versão empobrecida da Geografia permanece enraizada na prática
de um significativo número de professores, nas representações dos alunos
e da sociedade como um todo, embora seja bastante significativo
o avanço da reflexão teórica e da considerável literatura que apresenta
encaminhamentos ao modo de trabalhar essa ciência como matéria escolar.
Percebe-se também que entre os professores universitários ainda
é expressiva a compreensão da escola como lugar da simplificação
didatizada da produção geográfica.
O que foi exposto demonstra com clareza sérios problemas
relacionados ao ensino de Geografia, tanto nos níveis Fundamental e
Médio, quanto no universitário. Conforme evidenciado, a atitude dos
professores é de total passividade ante os avanços das reflexões sobre
a ciência geográfica e seu ensino. Dessa forma, o ensino de Geografia
permanece alheio ao seu papel central, ou seja, promover o desenvolvimento
mental dos alunos.
A consideração que se faz às propostas de ensino de Geografia e a
algumas expressivas pesquisas que apresentam aspectos da realidade do
ensino dessa matéria permite extrair considerações sobre os fundamentos
das propostas da Geografia Escolar e de sua prática de ensino.
No que diz respeito às propostas de ensino, percebe-se uma tendência
de flexibilidade em relação às orientações teórico-metodológicas da
ciência geográfica, ou seja, o reconhecimento do potencial das diferentes
tendências do pensamento geográfico. Isso se explica pelo fato de as propostas
de ensino produzidas na década de 1990 terem incorporado temas
ligados ao papel da cultura nas aprendizagens, à diferença, à linguagem, ao
papel da mídia, à interdisciplinaridade entre outros. Nesse sentido, pode-se
inferir que a tendência marcante hoje nas propostas de ensino de Geografia
se encaminha para uma multiplicidade de teorizações e de práticas.
As propostas analisadas demonstram também a preocupação de
seus autores em ampliar a discussão sobre o ensino de Geografia para
além dos conteúdos. Nesse sentido, as propostas poderiam se beneficiar,
para melhor compreensão do processo de ensino, das produções no campo
da Pedagogia e, especificamente, da Didática.
Em relação às práticas, a constatação mais evidente, salvo algumas
exceções, é de que o ensino de Geografia continua ainda com fortes traços
, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 285-305, jul./dez. 2010. 303
do ensino tradicional, tal como já observado e apresentado em pesquisas
que abordam a presente temática. Além da presença daqueles traços mais
comuns da pedagogia tradicional, como aula expositiva, memorização e
desconsideração do mundo do aluno, as pesquisas mostram um ensino
desinteressante, pouco atrativo, em que os conteúdos não mobilizam os
alunos a se apropriarem de conceitos geográficos para compreensão e
atuação na realidade, como deveria fazer um cidadão.
Percebe-se, também, que a situação real do ensino de Geografia na
década de 1990 mostra que as propostas feitas em torno do papel transformador
da Geografia Crítica foram modestas e pouco expressivas. Em
contraposição, verifica-se que, ao longo da década de 1990, aumentou
consideravelmente a participação de geógrafos formadores de professores
na pesquisa dirigida ao ensino de Geografia, com visível interesse em
buscar, na Pedagogia e na Didática, aportes necessários à melhoria da
formação do professor de Geografia.
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THEORETICAL REFERENCES OF THE SCHOOL OF GEOGRAPHY AND ITS
PRESENCE IN RESEARCH ON TEACHING PRACTICES
Abstract: in order to support the discussion in the discipline Didactics of Geography,
the article presents a reflection on the theoretical and methodological fundamentals
proposals for teaching of the geography, as well as an overview of the results of researches
on teaching practice for teachers of geography at elementary school. The findings
indicate the understanding that the proposals under study can be situated within two
approaches, the historical-critical-dialectic and phenomenological-hermeneutic. Regarding
practices, what is perceived that there is a gap related to academic production
on the teaching of geography.
Key Words: Geography, school of geography, educational practice, didactics
* Professora no Programa de Pós-graduação stricto sensu em Educação da Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC/Goiás), na linha Teorias da Educação e Processos Pedagógicos

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